quarta-feira, 31 de maio de 2017

Reminiscências da infância e da juventude

     Proust disse que "os verdadeiros paraísos são os que perdemos" e o poeta Mário Quintana ensinou que "a gente continua morando na velha casa em que nasceu" então, deve ter sido por isso que construí inteiramente uma chácara na zona rural de Brasília, onde há montanhas ao redor, coisa rara no planalto central, mas que faz parte da alma e do sentimento dos mineiros das alterosas. Inconscientemente o adulto a construiu ao longo tempo. Ali a enfeitou com bonitos jardins, lagos e água corrente, carro de boi e arado de aiveca trazidos da fazenda onde nasceu, nas Minas Gerais. Há, ainda, um Jeep Willys antigo, reformado e em plena forma para fazer trilhas nas montanhas, matas e no lago feito especialmente para essa finalidade. Inúmeras fruteiras, galinhas, cavalo marchador, cães de diferentes raças e até um moinho de brinquedo que é movido pela bica d´água. Há, também, pequenas plantações de hortaliças, milho, cana, mandioca, bananas e variado pomar. O café mereceu destaque especial com vários pés em franca produção, contando ainda com todo o maquinário, de pequeno porte e original da Pinhalense, para beneficiamento dos grãos, torrefação e moagem além do antigo torrador manual usado em fogão a lenha. Há também a máquina manual para moagem da cana e produção do caldo tão apreciado pelas crianças após uma pescaria nos lagos bem ao lado.

      Certamente tudo isso que ali fora construído confirma os dizeres dos autores citados. Ali, naquele lugar dei asas aos meus sonhos e pude reconstruir e recuperar, literalmente, o verdadeiro paraíso referido pelo escritor francês Marcel Proust e assim “continuar morando” na velha casa em que nasci, conforme a prosa e versos do grande poeta Mário Quintana. A casa onde nasci, aliás, foi também reproduzida em um belo quadro pintado por encomenda e que agora enfeita a parede da sala. Nela eu lanço diariamente o meu olhar contemplativo sobre a janela cortinada do quarto onde nasci e um filme de reminiscências roda sem parar na minha mente em deleite. Começa invariavelmente pelas brincadeiras de roda em frente àquela janela, lideradas por nossa mãe e tias (sempre havia uma por perto e acho que era para ajudar a olhar a meninada, pois éramos sete irmãos e, mais os agregados, chegando a mais de dez crianças). As brincadeiras de roda e outras além das cantigas folclóricas ocorriam diariamente e eram sempre após o jantar que era servido rigorosamente entre quatro e 4:30 horas da tarde. Às sete da noite todos já estavam prontos para dormir depois de um bom copo de leite quente.

 Não havia energia elétrica naquela velha fazenda e a iluminação era muito precária, à luz de lamparina de querosene. Depois melhorou com o lampião Aladim de camisa incandescente. Na verdade até existiu uma pequena hidrelétrica com gerador monofásico que deixou de funcionar antes que eu nascesse. Assim, devido ao recolhimento logo que escurecia, levantava-se muito cedo. Os pais já estavam de pé às 5 horas, com os primeiros acordes dos galos, quando então faziam o café, com o pó moído na hora. O barulho do moedor manual de café era o nosso despertador, pois, afixado no portal da cozinha ressonava em toda a casa no silêncio da madrugada, juntando-se à gostosa entonação dos cantos dos galos e da passarinhada. Entre seis e seis e meia da manhã todos já estavam de pé para o café com leite, queijo (preferíamos o queijo cabacinha que vinha da fábrica de queijos, onde era entregue a produção de leite), requeijão e manteiga caseiros, broas de fubá, bolo de mandioca, biscoitos de polvilho e bolachas (biscoitos de trigo) feitos no forno à lenha acoplado ao fogão. Todos esses alimentos eram simplesmente chamados de “quitandas”. Meu pai não dispensava uma farofa especial que ele próprio preparava com farinha de milho da marca Elefante (só servia essa tradicional marca, cuja fábrica se localizava na Rua Progresso, em Lavras) e muitos ovos mexidos em grandes pedaços. Mais parecia uma omelete, mas, ele a chamava de farofa. Sempre a fazia, especialmente quando já morando na cidade íamos, os meninos, passar as férias com ele na fazenda. Era o nosso paraíso. Ali havia de tudo com fartura, sem contar as frutas da estação, legumes, milho verde com pamonhas e curau.

E o filme da velha casa continua a rolar na imaginação com cenas das caronas no carro de bois carregado de café cereja, seguindo-se as imagens das estripulias do garoto galopando nos cavalos preferidos, os mangas-largas marchadores Rosilho, Queimadinho e a égua Mineira, de grande porte e inteiramente de cor preta. Desfilam ainda as imagens marcantes pela perigosa aventura nadando no ribeirão Água Limpa que transbordava e nos levava pela correnteza abaixo, boiando com duas cabaças amarradas sob os braços. Só mesmo o anjo da guarda dos meninos para salvá-los de acidentes como a queda na cachoeira de pedras, situada depois da segunda curva do turbulento riacho que transboordava nos meses de chuvarada e férias escolares. Graças a Deus que encalhávamos propositadamente na última curva de onde éramos resgatados pelos camaradas (empregados da fazenda) que lá estavam com uma vara de bambu para nos resgatar no paredão do barranco. E as aventuras continuam com as caçadas aos passarinhos, jogando bola no terreiro, subindo nas árvores imitando Tarzan ou simplesmente buscando as mais doces mangas, laranjas, figos, araticuns, goiabas e outras frutas. Também era comum, ao cavalgar pelas trilhas, matinhas e riachos, dar tiros imaginários com Colt 45 ou Winchester 44 nos bandidos em fuga como nos velhos filmes de far-west ou alvos diversos, geralmente grandes pedras no alto das serras ou nos paturis que povoavam as lagoas à beira do Rio Grande, juritis e aves de rapina como as corujas e gaviões muito espertos a nos amedrontar com seus vôos rasantes e piados característicos. Esse filme daqueles doces tempos não tem fim. É puro deleite, agora, ali no novo paraíso que construí e onde também cantam os sabiás, bem-te-vis, juritis, canários da terra, rolinhas, tizius, anus, quero-queros, paturis e até um belo casal de tucanos do bico amarelo e preto. Toda essa passarinhada em sinfonia se alimenta e reproduz ali mesmo no extenso e variado pomar que foi plantado justamente para atraí-los.

Hoje, na chácara, costumo trabalhar duro nos finais de semana na capina e jardinagem, no trator aparando grama, no plantio, nas colheitas de café e outras tantas atividades próprias de uma propriedade rural, porém nada com fins comerciais, apenas por puro lazer.  Não há momento em que não me recorde da figura de meu pai na constante lavra da terra, o mais honesto dos trabalhos onde o suor do trabalhador lhe remunera diretamente com a colheita farta do alimento, sustento da própria vida e de sua família. Não há prazer maior para um agricultor do que ver toda a família reunida à mesa, juntamente com os agregados e convidados saboreando os frutos de seu trabalho, servidos em abundância. Tranqüilo e grato a Deus ele pensa nos seus celeiros e paióis cheios, com a colheita farta e garantida para a alimentação da família e dos rebanhos até a próxima estação de chuvas. Assim era a vida no campo. Simples, mas enchia de orgulho toda a família que participava e desfrutava dos prazeres proporcionados pela natureza.

            Quem diria, tive que aprender as lições de um escritor francês e de um dos poetas brasileiros mais admirados, para encontrar, somente agora, a explicação para o fascínio que tenho pelo paraíso perdido representado pelas casas onde nasci e me criei até me formar na faculdade. A segunda casa, localizada na cidade, também pintada e decorando a mesma sala mostra, ao fundo, a imponência da Serra da Bocaina com indescritível beleza no horizonte. Proust e Quintana me fizeram entender esses sonhos inconscientes. Além disso, o novo paraíso, que reproduz os locais vividos no passado, é o refúgio onde posso contemplar a natureza em toda a sua dimensão – homem, terra, água, ar, fauna e flora. É ali que me reencontro como “pessoa” em minhas reflexões sobre os valores da vida, da família e dos amigos. Esse “retiro” na calmaria e beleza da natureza também se faz necessário devido à agitação da vida em grandes cidades, sobretudo na capital federal onde as relações, inclusive de trabalho, perpassam pela vertente política. É uma verdadeira selva de pedra e com todas as demais mazelas próprias como trânsito caótico e crescente violência que nos deixam estressados e até neuróticos. Por outro lado, o trabalho demasiadamente intelectual e desenvolvido com elevado padrão de ética exige profunda e completa imersão nas questões, o que nos leva à exaustão. É comum gastar-se 50 ou 100 horas de efetivo trabalho para a produção de uma tese inovadora e que demanda múltiplas pesquisas bibliográficas. Não bastasse a exaustão mental, as intensas demandas profissionais como conferencista em estratégias para a formação em Engenharia e Agronomia, nos empurravam,   quase sempre, para o isolamento do convívio social. Assim, diante do esgotamento mental só mesmo a construção  daquele novo “paraíso” quintanense/proustiano para recarregar nossas baterias.

            Também já aprendi que à medida que os anos passam a gente vai se tornando mais sensível, amoroso, saudoso e respeitoso em relação ao passado, à infância, juventude e aos valores inestimáveis dos amigos de infância, de nossos pais, irmãos e especialmente dos filhos e netos. Neles, os jovens, vemos a continuidade de nossas vidas. Portanto, acho mesmo que é natural que tenhamos em meio a essa vida agitada de hoje, esses surtos de saudosismos. Digo “surtos” porque não sou saudosista de desejar que o tempo retorne e que se volte à época dos arados de aiveca, dos carros de bois, dos cavalos como meio de transporte e a iluminação à lamparina, a pena e o tinteiro com o mata-borrão para escrever cartas a serem levadas por mensageiros ou, ainda, passear no duro e desconfortável Jeep Willys. Não há nada mesmo, com certeza, que eu desejasse hoje como era antigamente. A tecnologia e a modernidade aí estão para nos proporcionar maior conforto e bem estar. Melhor viajar num jato de seis ou 400 lugares, jantando em Nova York ou Paris e tomar o café da manhã no Rio de Janeiro. Ou então rodar num SUV importado, com ar condicionado, mídia e GPS, usar o celular ou a internet para se comunicar com o mundo inteiro por áudio, mensagem ou vídeo, ao vivo, instantaneamente. Muito melhor e mais confortável que esperar o mensageiro a pé, a cavalo ou de trem e barco, ou andar léguas para se encontrar o interlocutor. Mas, devemos olhar o passado com respeito e admiração, pois se constitui em verdadeiro aprendizado que valoriza o progresso de hoje e nos impulsiona para o amanhã. Portanto, devemos ter os olhos sempre voltados para o futuro, mantendo-se no coração os sentimentos ligados ao passado.

 A propósito de paraísos e da casa onde nascemos, há coisas mais doces e puras do que a infância e a juventude? Melhor se vividas num imenso ambiente cheio das mais variadas e prazerosas atividades, cercados de verdadeiros amigos que cresceram juntos no amor e toda a harmonia que a natureza nos oferece.

Proust e Quintana traduziram magistralmente esse sentimento e abaixo reproduzo as fotos e pinturas desses paraísos – o perdido e o reconstruído.

Brasília, 2006/2012


Paulo das Lavras 




 
A velha casa da fazenda onde nasci, em Lavras, no Sítio Retiro dos Ipês,
nas Três Brarras.

A casa da cidade em extensa área de 20 Ha da Chácara, onde hoje é a Vila Cruzeiro do Sul,
           com vista para a Serra da Bocaina. A casa ainda se encontra´á, na esquina de Rua Progresso
 com Lázaro de Azevedo
                                                                          


 
O paraíso reconstruído em Brasília: a casa, o carro de boi...



...                        O arado de aiveca que pertenceu a meu pai, trazido para o  novo  paraíso                         
                                                                                                                                  




o Manga Larga Marchador, como nos tempos da fazenda.



A pescaria dos netinhos...



 
                       O velho Jeep Willys para trilhas no barro e montanhas... , crianças 
a bordo e travessia de lagoa..., adrenalina a mil   
                              


                          A secagem do café recém-colhido! E, acreditem, e no cerrado de Brasília                                                                


Subir na jabuticabeira e se fartar... sabor de infância que nunca
 esquecemos, mesmo depois de mais de 60 anos e a 1.000 km de distância



O cheiro adocicado do café, vermelho  e do amarelo bourbon, faz brotar a
reminiscência da infância vivida na fazenda, pegando carona no carro de boi
 carregado de café cereja recém-colhido. Proust e e Quintana têm razão... continuamos
a morar na velha casa onde nascemos. Verdadeiro paraíso perdido, mas que mora
eternamente na alma da criança que nunca deixamos de ser.
E tem nome... : Felicidade!







2 comentários:

  1. Parabéns Paulo! Muito bonitas suas palavras..

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    1. Obrigado, Ederson. Quando se escreve com o coração conseguimos expressar os verdadeiros sentimentos gravados na alma

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