sábado, 20 de maio de 2017

93 milhões de milhas de distância e ainda em casa

Noventa e três milhões de milhas é a distancia do sol. A lua está a 240 mil milhas da terra e quando os vemos e admiramos nos lembramos daquilo que os pais nos diziam:
“Oh, minha bela mãe..., ela me disse, filho, você irá longe na vida. Se fizer tudo direito, amará o lugar onde estiver, mas tenha a certeza de que onde quer que vá, você sempre poderá voltar para casa. Coisas de mãe, com certeza, pois sempre querem os filhos ao seu redor, mas, no entanto compreendem que eles precisam voar, deixar o ninho. Já o pai dizia:
“filho, às vezes, pode parecer escuro, mas a ausência da luz é uma parte necessária na vida. Apenas tenha certeza de que você nunca está sozinho e você sempre poderá voltar para casa. Casa, casa..., você sempre pode voltar”.

            E lá fomos todos nós, eu você, os amigos “ganhar a vida”. Encontramos “a estrada que é uma subida escorregadia, mas sempre pudemos, também, encontrar uma mão na qual podíamos nos segurar. E então, ali, olhando profundamente pelo telescópio o distante sol ou a lua, você pode perceber que seu lar está dentro de você”.

            Belas estrofes grifadas em itálico. São partes da letra da canção interpretada por Jason Mraz, 93 Million Miles. Têm profundo e verdadeiro significado. Quando menino deixei a casa de meus pais e fui, voluntariamente, para um internato, um Seminário da igreja católica. Em poucos dias percebi, ao contrário do que disse o poeta compositor, que o lar não estava dentro de mim, enquanto ali permanecesse. Mas, a sabedoria materna não nos deixa errar. Eu ainda não estava fazendo a coisa certa, pois era criança e prevaleceu a segunda parte: “... onde quer que vá, você sempre poderá voltar para casa”. E definitivamente voltei para casa ao término do ano letivo e fui mais feliz.

            Mas, anos mais tarde, em missões de longa duração, no exterior a milhares de milhas, sozinho nos hotéis, pude sentir literalmente as palavras do cantor: “às vezes, pode parecer escuro, mas a ausência da luz é uma parte necessária na vida. Apenas tenha certeza de que você nunca está sozinho e você sempre poderá voltar para casa. Casa, casa..., você sempre pode voltar”. Alma ferida, solitária, distante fisicamente e eis que abate sobre mim o manto da escuridão. A escuridão da alma, quase um estado de depressão. Foi assim nos EUA e também na França. Neste último, lá pelo quarto domingo de demorada viagem, numa manhã fria, nublada, confinado em um quarto de hotel, sozinho, a mais de 10.000 km de distância da família e amigos, sem ânimo nem mesmo para sair para almoçar, atacou o pânico. Uma ansiedade sem igual com sentimentos de medo e de solidão em ambiente desconhecido e imaginariamente hostil, até mesmo pela paisagem urbana, da mais que milenar capital francesa, em profundo contraste com a luminosa, espaçosa e verdejante capital de nosso país, local de residência fixa havia longo tempo.

Conheci assim pela primeira vez a depressão, a escuridão da alma, tal qual descrito na canção já citada: “às vezes, pode parecer escuro, mas a ausência da luz é uma parte necessária na vida”. Que coisa mais cruel, pois, ironicamente a escuridão me abateu ali, na conhecida e aclamada Cidade Luz, a olhar pela janela aquele cenário sombrio, embaçado, de casario e prédios antigos, que aumentavam ainda mais a angústia quando comparada aos amplos, modernos e ensolarados espaços de Brasília, onde o céu mais parece um mar azul sobre nossas cabeças. Parecia um exílio, forçado pelas circunstâncias do trabalho. Lembrei-me do ex-presidente, JK, que descrevera essa situação de extremo desespero quando de seu exílio político na França (1964/67). Disse ele:
“Não há primavera nesta terra. As árvores estão verdes e as flores coloridas, mas o sol, que é propriedade comum dos homens, se esconde sempre atrás de nuvens carrancudas e hostis. Isso reflete na alma da gente e só convida a pensamentos que trazem o tom das nuvens, cor de spleen” (termo de Baudelaire, que exprime profundo sentimento de desânimo, isolamento, angústia e tédio existencial).

Bateu o desespero no menino das Lavras ao relembrar as palavras de JK e se pôs a perguntar onde estariam as palmeiras em que cantam os sabiás, as aves que gorjeiam nas copas das exuberantes árvores? Ah... JK e o poeta Gonçalves Dias são sábios, vividos, experientes no exílio e com amor incontido à Pátria, aos amigos, à família. A angústia, a dor da saudade dos entes queridos, verdadeiro banzo, provocaram lágrimas num pranto incontido no menino que suplicou, implorando a Deus para que aquele pesadelo ao vivo passasse logo e que a paz para o espírito condoído voltasse à normalidade, à razão. Coração disparado, respiração curta, suor, tontura, seria um ataque de coração? A boca seca, uma onda de calor pelo corpo, e num gesto desesperado abriu a velha janela, empoeirada por fora e o frio cortante do inverno parisiense açoitou-lhe o rosto, num choque térmico que pareceu cortar a respiração de vez. Parecia que a vida estava por um fio diante do ataque incontrolado do pânico. Afinal, só restou mesmo o gesto incontido da alma ferida, em verdadeiro desespero e num esforço físico e mental extraordinário lançar mão do telefone, ali na cabeceira da cama e ligar para a casa distante. Sim, a casa a que nossos pais se referiam, o lar onde estão os entes queridos, esposa e filhos, a família. Com dificuldade, pois não existia ainda a telefonia celular, juntou os lampejos de raciocínio que afloravam e deu conta de discar o zero, outro zero, os códigos do país e da cidade e os oitos dígitos do número de casa. Como foi bom ouvir a voz da esposa, do outro lado do mundo e ainda o alarido das crianças correndo pela casa. Parecia que estava retornando ao aconchego do lar. Porém, por mais que me esforçara para dissimular e evitar maiores preocupações a ela, não foi possível esconder o pranto angustiado, o descontrole de quem se julgava “perdido”, sem ninguém para lhe dizer uma palavra, tirar-lhe daquela solidão abissal, pânico. As palavras não se articulavam, pois o pranto dominava. Lembro-me apenas de ter respondido que estava no quarto do hotel. Porém, ela tudo compreendeu, que estava a salvo do acidente ou dano físico. O dano era outro e bem profundo, na alma e então ela, calmamente, recitou o Salmo 23:
     
O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto de mansas águas;
Refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome;
     Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum,
     porque Tu estás comigo; o Teu bordão e o Teu cajado me consolam.
     Preparas-me uma mesa na presença dos meus inimigos,
     unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda.
    Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e 
    habitarei na Casa do Senhor para todo o sempre.

Uma verdadeira oração, bálsamo para consolar a alma dolorida, perdida, ofuscada pelas trevas que me abateram, ainda que momentâneas. A oração proferida e atentamente ouvida, ainda que à longa distância, deu-me confiança, tal qual ao salmista, o rei Davi, em seus momentos de fraquezas. Confiei que nada me faltaria ali naquele lugar distante, sombrio, desconhecido e solitário. Deus estaria comigo e minha esposa passou-me essa certeza e foi o que me sustentou, retirando-me daquele “vale da sombra da morte”, a morte da alma cujo consciente fugia ao controle. Tudo se acalmou com a voz e a serenidade das palavras com seu poderoso clamor invocando a presença de Deus e fortalecendo a alma. Caí em sono profundo como que anestesiado pelas palavras do salmo e de conforto..., “tenho uma casa, para onde voltarei”. Ainda não eram nem 11 horas da manhã e mesmo assim, caí em profundo sono reparador. Acordei no final da tarde, me alimentei levemente com frutas e derivados do leite e pude, assim, lá permanecer por mais uma semana, em paz, até que terminasse a missão de trabalho naquele país.

Dia seguinte nada mais havia, tudo normal, pois o menino engrenara no seu brinquedinho de segunda a sexta – o trabalho intenso, típico dos workahollic. Mas aprendi a lição, compreendi que as unhas do inconsciente, ocultas como as dos felinos, podem aflorar repentinamente, ferir-nos gravemente e em certos casos até provocar a loucura e a morte. Percebi que a loucura passou perto de mim, ou em outras palavras, no jargão médico, foi um ataque de ansiedade ou de pânico, que é mais comum do que se pensa. E isso tudo sem que nós mesmos percebamos que estamos caminhando para tal.

Sábias, muito sábias as estrofes cantadas por Jason Mraz. Não a toa ele repete: Você sempre poderá voltar para casa,... Casa... Casa. Você sempre pode voltar”. Mas, mais sábias ainda são as palavras do salmista. Aprendi a lição e hoje um amigo paulista acionou o gatilho de meu subconsciente ao postar aquela musica cujo link está indicado ao final. Verdadeiramente a casa é o abrigo seguro nas horas de tempestades. E quando você está só, mesmo perdido nas trevas e não souber o que fazer, a lembrança de casa sempre lhe inspira e traz de volta o amor, a confiança de que tudo vai dar certo.

A distância e a solidão, juntas, não são, efetivamente, boas companheiras. Aprendi isso duramente. Estudos no campo da psicologia mostram que o corpo tem individualidade, o ego, enquanto o espirito, a alma, não tem isso. O corpo sofre com a separação física e o primeiro choque de separação foi quando saímos do conforto da barriga da mãe. E elas, as mães sabem disso, sentem isso e são as primeiras a dizer “... filho, aonde quer que esteja, saiba que aqui é a sua casa, volte...”. A separação produz o medo, a fonte de todas as angústias. O espírito, a nossa alma, ao contrário, não tem senso de individualidade e é comum até dizermos que nos irmanamos em espirito às pessoas. Por isso sempre procuramos a companhia de amigos, que na verdade nem sempre se trata da companhia física, mas, sobretudo pela palavra de conforto estímulo ou até mesmo a crítica construtiva. Por outro lado, considerando a magnitude da alma e se “olharmos profundamente pelo telescópio”, como dito na música citada, Você pode perceber que seu lar está dentro de você. Apenas tenha certeza de que onde quer que você vá, onde quer que você esteja você nunca está sozinho, não! Você sempre voltará para casa”. Bastou um telefonem e minha alma serenou, comungou o amor e reencontrei o lar, ainda que muito distante fisicamente. Aliás, o melhor das viagens, sobretudo as longas e demoradas, não é mesmo a volta para casa? Por isso digo que tanto faz estar num concerto de rock no magnífico Red Rock Amphitheater em Denver, onde Jason Mraz encenou seu clip, ou ainda no rigoroso inverno nublado de Paris, ou ali mesmo do outro lado ou mais figuradamente dentro de um gigantesco telescópio, perscrutando a lua ou o sol, posso plagiar o autor e dizer  com plena convicção:

93 milhões de milhas de distância... e ainda em casa! Mais que certo!


Brasília, 20 de maio de 2017


Paulo das Lavras

https://www.vagalume.com.br/jason-mraz/93-million-miles-traducao.html  



 
Jason Mraz, gravando o clip em Red Rocks – 93 Millions Miles
Foto: internet

 
O belíssimo anfiteatro Red Rocks, em pleno canyon, no Colorado
 Foto: internet


 Turistas apreciando o espetáculo no Canyon de Red Rocks
Foto: internet


 
Jason Mraz- 93 Millions Miles – a solidão no deserto... mas pensando na volta para casa
Foto: internet


Estando em casa, nos tempos de faculdade, cercado de amigos... , não havia solidão


Frio de zero grau, tempo nublado..., nem mesmo o belo cenário exibido em outras estações é capaz de evitar aquilo que JK expressou: tem reflexo nas pessoas, deixando-nos com a alma abatida



o há maravilhas, nem a torre Eiffel e tampouco a beleza azul do rio Sena à esquerda da foto, no bosque da região do palácio de Versalhes, que acabem com a solidão, o banzo, a vontade de voltar para casa, o aconchego do lar e dos amigos.


Como diz a letra de Jason Mraz: “você sempre poderá voltar para casa, ainda que seja bem sucedido lá longe”. Nada melhor que voltar de uma viagem a tempo de participar da festinha de aniversário de entes queridos... Bálsamo para a alma!
  


4 comentários:

  1. Belíssima crônica, Paulo. Verdadeira e emocionante. Abraço.

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  2. obrigado, Eugênio. Aquela música que você postou disparou o gatilho de minhas reminiscências sobre o tema tão bem interpretado por Jason Mraz. Um abraço

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  3. Paulo, você retratou bem o que é uma alma angustiada, linda mesmo sua crônica, delicada, terna e um bálsamo a quem a lê, porque há uma luz no fundo do túnel e com ela devemos contar sempre! Ressalvo, porém, que a depressão é uma doença, assim como a
    ansiedade e devem ser tratadas e acompanhadas por um médico. Sei bem o que é depressão e pânico, pois minha família paterna carrega no DNA essa doença e sou a única dos irmãos que sofre com ela. Por isso, às vezes, mesmo estando medicada, essa angústia aparece e só Deus nessa hora, porque é difícil controlar o sentimento devastador que se apodera da pessoa. Mas tudo tem seu tempo e sua hora e, felizmente, no meu caso também já passou. Obrigada e um abração!

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    1. Verdade, Tida, há casos mais sérios e que exigem intervenção médica. A presença dos entes queridos é de suma importância, em qualquer dos casos. Nada substitui a segurança, o amor que encontramos em casa, até mesmo num sentido mais amplo, incluindo os amigos. Que Deus continue lhe abençoando, sempre. Um abraço.

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