sexta-feira, 31 de março de 2017

Um cabaré francês em Lavras: Uma história sobre a época de ouro do café, barões, coronéis e suas manteúdas

Lyon é a terceira maior cidade da França, situada à margem do rio Ródano, na região alpina e não muito distante da fronteira com a Áustria. Ali nasceu Henry Avalon que, por volta de 1920 veio visitar o Brasil. Conheceu o Rio de Janeiro e se encantou pela cidade, onde conheceu uma brasileira por quem se apaixonou. Meses depois retornou, definitivamente, para ficar e morar no paraíso tropical que os franceses tanto adoram. Logo depois decidiu fixar residência na pacata cidade de Lavras dos anos 1920. Alguns dizem que foi por causa do boom do café do sul de Minas, que dominava os negócios de exportação. Certamente conhecera algum brasileiro exportador de café, no Rio ou mesmo nas noitadas francesas, quando provavelmente lhe sugeriram a cidade de Lavras para investir em negócios do ramo de cultura e diversão.



 O Monsieur Henry estava acostumado a levar brasileiros para um tour pela cidade luz, a efervescente Paris. Seus périplos noturnos começavam com jantar no primeiro andar da Torre Eiffel, seguindo-se um cruzeiro pelo Sena, no famoso Bateau Mouche e finalmente uma noitada no Moulin Rouge. Esse era o roteiro turístico mais procurado pelos turistas-fazendeiros endinheirados.  No jantar regado a bons vinhos, na glamorosa torre, deslumbrava-se a bela vista panorâmica da enorme esplanada Des Invalides, o Arco do Triunfo e o Campo de Marte, entre outros. O passeio pelo Sena, com duração de uma hora e vinho de cortesia, permitia ao turista admirar os monumentos ao longo de suas margens, como o Museu d´Orsay, Museu do Louvre à esquerda, Catedral Notre Dame e a própria Torre Eiffel à direita entre tantos outros pontos de atração. Após o desembarque, segue-se para o show “Féerie” do Moulin Rouge, acompanhado de champanhe.   

              
Paris, uma profusão de cabarés chiques como o Paradis Latin e Moulin Rouge


Desse belo roteiro que o Monsieur proporcionava aos fazendeiros do café brasileiro, cumpri as duas primeiras partes na época em que desempenhei várias missões oficiais, de média duração, do Ministério da Educação na França. Não frequentei o Moulin Rouge, mas vi o Bataclan e deu para entender os anseios do Monsieur Henry Avalon... Não daria para levar para o Brasil o Rio Sena, a Torre Eiffel e tampouco o Moulin Rouge. Mas, cansado de ciceronear brasileiros, naquele atrativo e aprazível roteiro, decidiu montar no Brasil, mais precisamente na culta cidade de Lavras, acostumada ao belíssimo Theatro Municipal, de Francesco Pizzolante, um cabaré do naipe daquele ou de seus similares como o Lido e outros. Bastaria levar uma troupe de bailarinas e coreógrafas... 



                
 O Menino das Lavras, nos tempos de jovem executivo da educação superior, em Paris, cobiçando um passeio no Bateau Mouche pelo rio Sena. ... ... e nele tomando um bom rouge, apreciando o belo cenário parisiense, pensando nos feitos do M. Henry Avalon: criou um cabaré francês na  minha cidade natal - Lavras.  Fotos: do autor  



                    O projetado empreendimento “artístico e cultural” do Monsieur tinha tudo para dar certo. Estavam em pleno período da Belle Époque, de grande ostentação, incluindo até a compra de títulos de nobreza na Europa e por aqui. No Brasil a compra de patentes da Guarda Nacional era uma maneira de ostentação dos abastados fazendeiros do café. Daí a profusão de barões, coronéis, capitães e majores entre a elite rural. Foi uma época de franca expansão das invenções como o automóvel, telefone, avião, telégrafo sem fio, casas de óperas, livrarias e cafés. Foram tempos de grande efervescência cultural. Em Lavras, por exemplo, mais precisamente em 17 de fevereiro de 1917, inaugurou-se o Theatro Municipal, cópia do Scala de Milão, quando Francisco Pizzolante, seu fundador, trouxe a Companhia Lírica Rotoli-Billoro, que encenou a famosa ópera “Aída”, de Verdi. O cinematógrafo que chegou à cidade por volta de 1900, funcionou por muito tempo, com o nome de Cine Municipal, no prédio do Theatro Municipal. Migrou para o salão do Colégio Aparecida, de 1960 a 10 de fevereiro de1962, quando se inaugurou o Cine Brasil, na Praça da Bandeira, ao lado da Igreja Presbiteriana.       


         
O belíssimo Theatro Municipal de Lavras, reprodução do Scala de Milão, com luxuoso interior em três níveis. Obra de Francisco Pizzolanti, inaugurada em 1917, três anos ante do projeto do cabaré    francês 
Fotos: arquivo de Renato Libeck



Os “causos” do cabaré Taça de Ouro

     Não foram encontrados textos sobre a história do cabaré francês em Lavras, porém a sua história oral ainda é bastante viva. O artista, pintor e memorialista, Luiz Teixeira da Silva, do alto de seus 93 anos bem vividos nos relatou, com extrema lucidez e detalhes, alguns casos sobre o cabaré francês lavrense, o Taça de Ouro. Alguns amigos foram visita-lo, recentemente e contaram a ele que um de seus amigos, Pedro Neves, já falecido, deu muito “trabalho” no final da vida, pois contava muitos causos do tal cabaré e insistia para que os filhos chamassem o Sr Luiz Teixeira para, juntos, irem ao cabaré francês. No seu leito, se comprazia com suas lembranças, imaginando que ainda era e estivesse nos tempos de sua juventude. Daí, então a insistência para que chamassem o amigo para acompanha-lo a assistir o show das belas francesa dançarinas de can-can, no Taça de Ouro.


      Ao saber, recentemente, do inusitado convite para ir ao Taça de Ouro, Sr. Luiz gargalhou a semana inteira, contaram os amigos da família. Nunca recebera o tal convite, pois ninguém foi doido o suficiente para transmitir-lhe o convite para visitar a zona, fato comum na juventude, mas que soava indecoroso em meio à família de um quase nonagenário e respeitado senhor. Mas, também, ninguém saberá se ele teria aceitado o convite, caso tivesse sido informado a tempo. Nem mesmo os mais chegados ousaram perguntar-lhe e assim tomamos conhecimento da história que acabou virando piada. Mas, não poupamos perguntas aos demais entrevistados, parentes e amigos de Pedro Neves, Henry Avalon e do próprio Sr. Luiz que desfiou um rosário de casos pitorescos envolvendo amigos e até desconhecidos que lhe confidenciavam as peripécias, os cuidados e os medos da época, numa sociedade que fingia ignorar a questão dos prostíbulos e a saúde pública. Mas, um cabaré com legítimas francesas se exibindo em trajes sumaríssimos, numa pacata cidade do interior, era, de fato, um caso raro e por isso atraía as atenções.  



               
Os cabarés franceses apresentam shows de can-can nas cores bleu, blanc, rouge e várias outras atrações. Foi sucesso total na culta cidade dos ipês e das escolas! Pedro Neves, assíduo frequentador desses espetáculos no Taça de Ouro, imaginava e queria, no final de sua vida, “assistir ao show” ao lado de seu amigo de juventude, Luiz Teixeira. Para ele, quase nonagenário, o Taça de Ouro ainda existia e ele ainda seria um jovem...   Fotos: Internet




            Sr Luiz, entusiasmado com a recordação dos fatos de mais de setenta anos, contou muitos casos da “zona” com inúmeras casas de tolerância, especialmente do Cabaré Taça de Ouro. Ali as meninas causavam furor. Nunca havia sido visto antes na cidade uma legítima francesa, exótica, de pele alvinha, maquiagem finamente carregada e roupas extravagantes para a época, sobretudo em pacata cidade do interior. Quando essas “meninas” saíam às ruas, causavam intenso alvoroço, quer pela rapaziada extasiada ou pelas próprias mulheres da sociedade, que não se continham e disfarçavam olhares de soslaio. Quando flagradas apreciando a cena, simulavam um espanto de horror, contava Sr. Luiz, que ainda se lembrou de alguns nomes daquelas “meninas”.
            
         Nunca vimos tanto brilho nos olhos e satisfação ao contar esses causos e relembrar o amigo Pedro Neves, seu companheiro de juventude nas visitas ao cabaré francês de Lavras. Continuando suas histórias, contou que trabalhava numa loja em frente à Santa Casa de Misericórdia, para onde acorriam os infectados com as “doenças de rua”, com seus nomes exóticos, Mula, Jacaré de Crista, Cavalo, Fogagem... A Policia Militar, que naqueles tempos chamava-se Batalhão de Caçadores e mais tarde 8º Batalhão de Infantaria, trazia, pelas mãos do enfermeiro Nêgo, muitos soldados para se tratarem, ali naquele hospital, com os médico já calejados, tantas eram as doenças venéreas. Os jovens soldados chegavam envergonhados e amedrontados com as terríveis injeções do tipo benzetacil e outras que deixavam o traseiro “aleijado” por muitos dias. Pior eram as raspagens com sondas que pareciam perfurar as tripas e fazer desmaiar o paciente, sob o olhar cínico dos enfermeiros e gargalhadas como a recordar que o prazer tem seu preço, disse Sr Luiz.

            
         Antes de entrar para a sessão de tortura médica, os “pacientes”, passavam pela loja em frente e choravam as mágoas, ou melhor, o medo, para o atento amigo Luiz Teixeira. Agora, não escondia sua ironia ao contar isso tanto tempo depois e todos que a escutavam gargalhavam até chorar, imaginando aquele desfile de guapos rapazes, fragilizados, aterrorizados como meninos em dia de vacina no bumbum. E pior, os algozes ali, com os instrumentos cirúrgicos a rirem e a plateia do outro lado da rua, na loja do Sr Luiz. Assim, sem querer, descobri com seus causos que havia uma parte da história de Lavras que ainda não fora contada. Sr Luiz Teixeira da Silva é mesmo um memorialista fantástico e com grande senso de humor. 



Antiga Santa Casa se Misericórdia de Lavras, fundada em 1865, ao lado da Igreja Matriz. Ali os guapos rapazes iam se tratar das doenças venéreas adquiridas no Taça de Ouro e redondezas. Sr Luiz Teixeira, que trabalhava na loja em frente, dava-lhes conforto moral, mas avisava que as sondas uretrais e as injeções eram terríveis. Só faltavam chorar como crianças... e ele, Sr Luiz, também, porém de tanto gargalhar vendo o medo, o pavor de quem parecia estar condenado à morte..... Perguntei-lhe se essa “maldade” não escondia um pouco de inveja dos rapazes que pernoitaram com as lindas madames francesas, respondeu-me, matreiramente... “que não se lembrava...” 
Foto: arquivos de Renato Libeck




          Mas, há ainda outras histórias muito engraçadas, envolvendo a “zona”. Verdadeiros “causos” que dariam enredo a um livro inteiro. Em passado não muito distante, contou-me o saudoso Sr Chiquinho Narciso e relembrado pelo mano, Anízio Pereira da Silva. Embora todos os casos relatados sejam verdadeiros, alguns nomes foram trocados para proteger a identidade dos protagonistas. Este memorialista não inventa..., só aumenta um pouquinho para apimentar os causos e por isso garante, são verdadeiros e certamente ainda há pessoas em Lavras que deles se lembrem. Porém, antes de prosseguir com os relatos dos casos, verdadeiros, é necessário compreender o contexto social da época, a inserção das casas de espetáculos e prostíbulos nos costumes dos grandes centros e cidades do interior. Nesse particular a bibliografia nacional é farta, descrevendo o pensar e o agir da sociedade de então, quase sempre encoberta por pura hipocrisia do fingir que nada existe e nada se sabe. 


O cabaré francês em Lavras 

         Naqueles anos da década de 1920 a cidade de Lavras não contava mais que 20.000 habitantes e a economia se baseava quase que exclusivamente na agricultura, predominando a produção de café, cereais e gado de leite. O café naquela década se despontava como a produção mais rendosa da região. Era um produto fino, próprio para a exportação. O mês de junho, época da colheita, era ansiosamente esperado pelos comerciantes da cidade, pois costumava passar por ali o famoso negociante de café para exportação, Sr Diano, da cidade de Dores da Boa Esperança, casado com uma lavrense, a prendada e culta Sra Carminha Azevedo Alves, filha do não menos conceituado Capitão Evaristo Alves. O Capitão, como era conhecido, mandou construir o mais bonito sobrado da cidade, situado ao lado da Igreja do Rosário, na praça central. Diano, seu genro, comprava e pagava à vista toda a produção de café dos fazendeiros. Não raras vezes trazia à Lavras sua família e se hospedava no sobrado do Capitão, conforme contava Rubem Alves, seu filho mais novo, o conhecido e famoso escritor, filósofo e poeta falecido em julho de 2014. 

 

O belíssimo sobrado do Capitão Evaristo Alves, avô do filósofo e escritor Rubem Alves.
Diano, seu genro, comprador de café, abastecia a cidade com dinheiro vindo de seus negócios de exportação. A fama do dinheiro em Lavras chegou à Paris e como isso, incentivou o M. Henry Avalon a construir um cabaré francês.  Nesse belo sobrado, do Capitão Evaristo, ficava o famoso piano Pleyel, sempre afinado pelo saudoso Paulo dos Pianos e que dona Carminha Azevedo importou da França. Ali, na década de 1970, muitas moças de Lavras aprenderam a arte de tocá-lo, com a professora,  Cecília Azevedo, bem ali no segundo andar.

Foto de 1958. Hoje ali funciona o Banco do Brasil. Ao lado, à direita, é a Igreja do Rosário, onde os garotos montavam seus caixotes de engraxate - arquivos de Renato Libeck



         
         A colheita do café fazia circular uma montanha de dinheiro extra na cidade. Era época do comercio faturar alto. Por outro lado, a vida cultural da cidade era bem restrita. Havia, sim, o Theatro Municipal, obra do mecenas Francisco Pizzolanti e que de vez em quando trazia uma troupe do Rio ou mesmo da Itália para encenar óperas e recitais. Assim, com seu olhar arguto de frequentador de shows em Paris, Bordeaux e Lyon, o monsieur Henry, homem culto e de grandes posses, teve a ideia de movimentar um pouco mais a vida na "ville de Lavrás, l´état du Minás Gerráis". Aprendera o português, abrasileirou seu nome para Henrique e voltou à França para realizar negócios, ou melhor, importar um negócio. Em Paris contratou algumas artistas, incluindo uma coreógrafa e assim fundou, em Lavras, uma casa de shows e entretenimentos privados para clientes especiais. Nasceu então o cabaré de luxo que oferecia espetáculos à semelhança daqueles do Moullin Rouge, Lido e outros não menos famosos de Paris e que ele tanto apreciava.  Batizou-o com o nome de “Taça de Ouro”.

         Para abrigar seu visionário e inovador empreendimento já havia construído em Lavras um casarão, com amplos salões, situado no cruzamento das ruas Álvaro Botelho e 14 de Agosto. Eram dois grandes salões onde as damas francesas circulavam pelas mesas repletas de fazendeiros, barões do café e do gado de leite. Sentavam-se, cumprimentavam com um solene bon-jour (os clientes, que só falavam português, nunca entenderam porque o bom-dia... bom-jour, embora fosse noite), pediam bebidas e convidavam os visitantes para dançar. Mal falavam português, mas naquelas condições e para os fins a que se destinavam os encontros e diante de tanto vislumbre e da novidade estrangeira do mais chique naipe, importadas diretamente de Paris, quem iria se importar em compreender palavras se os gestos eram mais diretos? Logo em seguida, às 20:30 horas, tinha início o show, num palco bem ao estilo de um teatro e que se localizava entre um e outro salão. As madames francesas agradavam bastante com o show bem ao estilo can-can, sob a batuta de estrondosa orquestra, chamada de “jazz”. 


 
Cabaré a la français, “Taça de Ouro” , construído na década de 1920. Funcionou
até 1940/50 com esse nome e depois, “Boate Capixa”, por mais uns vinte anos.
Prédio com enormes  salões, construído por Henry Avalon, francês da cidade
de Lyon e que se radicou em Lavras desde o ano de 1920.
Foto: Marcília Teixeira 



     Lavras não era e nunca foi uma estância hidromineral, mas tinha uma grande atração: o cabaré francês como era conhecido, com lindas madames que, além de atender os clientes, dançavam divinamente o can-can com a mesma coreografia do Lido ou do Moulin-Rouge parisienses. Ao contrário das cidades de São Lourenço, Caxambu, Lambari e outras como Poços de Caldas – a Las Vegas brasileira, que chegou a ter 20 grandes cassinos, que podiam explorar o “motivo” da atração das “fontes milagrosas” sulfurosas e alcalinas. Essa era a grande vantagem, a “justificativa” para quem queria apenas se divertir com jogatina e belas mulheres.  Ninguém dizia que iria a aquelas cidades para jogar ou se divertir, mas sim para se tratar nas águas “milagrosas”. Mas, a verdade era bem outra, basta dizer que Caxambu, uma das mais famosas estâncias, mantinha, em 1922, oito orquestras contratadas permanentemente para abrilhantar os salões dos cassinos dos hotéis. Certamente o objetivo dessas numerosas orquestras não era o “tratamento acústico” de respeitáveis senhores... No entanto, esposa alguma imaginaria algo em contrário à fama de cidades das águas milagrosas e o marido podia então, tranquilamente, “tratar” da saúde... É fato também que naquelas cidades as belas mulheres eram discretas e só atuavam em recintos fechados nas casas de diversão e hotéis de luxo, contam os historiadores. Até a igreja fez vista grossa quando os donos de cassinos passaram a contribuir, com a renda de um dos dias santos, para os cofres da paróquia, conforme noticiou um jornal de Poços de Caldas. Até mesmo o presidente Getúlio Vargas era assíduo frequentador daquela estância hidromineral, mantendo uma suíte exclusiva no Grande Hotel, com a mesma decoração usada no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, a então capital federal.   


 
Nota de 10 cruzeiros, moeda que substituiu o mil réis no auge da jogatina, em 1942, com a esfinge de Getúlio Vargas, assíduo frequentador dos hotéis de luxo das estâncias hidrominerais de Minas Gerais.
Não foi à toa que o circuito das águas teve a primeira rodovia asfaltada no sul de Minas, ligando as cidades de “águas milagrosas” à antiga capital do país, Rio de Janeiro. 


         O Cassino de Lambari ficou famoso pela imponência da sua construção, o Castelo, assim chamado por Rubem Alves, neto do Capitão Evaristo, de Lavras, que morou bem ao lado daquele famoso cassino, de 1938 a 1939, quando sua família para lá se mudou. Essa majestosa construção, de Lambari, em estilo barroco, foi inaugurada em 1901, por obra e graça de um megalomaníaco, Américo Werneck (1855-1927), político que acabara de ser exonerado do cargo de prefeito de Belo Horizonte, na virada do século e então se propôs a construir, a partir do zero, uma cidade inteira – Lambari, e nela o belo cassino. 

            Diano, o novo vizinho do castelo, pai de Rubem Alves e genro do Capitão Evaristo Alves de Azevedo, tendo falido seu próspero e rendoso negócio de exportação de café, após o crack da bolsa de valores de Nova York de 1929, decidiu entrar no ramo do comércio ambulante – cometa, ou mascate - como eram chamados esses vendedores. A cidade de Lambari era, segundo ele, um ponto estratégico para percorrer as cidades vizinhas na busca de clientes para seu comércio ambulante. Rubem Alves, no entanto, duvidou dessa razão defendida por seu pai. Dizia que, a ser assim a escolha recairia sobre Três Corações, importante entroncamento ferroviário que facilitaria a mobilidade pelo trem de ferro. Rubem Alves imaginava que seu pai a escolheu por causa do “Castelo Encantado” sobre a colina e que seria a sede do governo imaginário de Werneck.  Talvez Diano a tenha escolhido pela proximidade das cidades dos cassinos e estâncias hidrominerais que tinham sua clientela interessada na saúde e na jogatina. Pouco tempo depois da chegada da família de Rubem Alves à cidade de Lambari o castelo foi transformado em cassino. Mas, funcionou apenas uma noite e foi fechado e tempos depois, em 1946, o presidente Dutra baixou decreto acabando de vez com a jogatina em todo o país. Em 2013 o governo estadual transformou o Castelo em Museu das Águas, para a preservação da memória dos tempos áureos.
  

O estilo francês em Lavras

              A cidade de Lavras não contava com a mesma sorte de Lambari, que ganhou um castelo, ou de Poços de Caldas e demais estâncias hidrominerais que podiam atrair casas de jogos e de diversão, sob o manto das milagrosas águas termais. Mas, tinha o “ouro verde”, o café, que fazia a riqueza de muitos fazendeiros. Foi exatamente isto que atraiu os investimentos do francês Henry. Embora o prédio do Cabaré Taça de Ouro seja de construção simples, sem nenhum estilo que o distinguisse em relação às demais casas comerciais da cidade, pode-se afirmar que ainda assim, tanto quanto o Theatro Municipal, marcou a época de esplendor da cultura em Lavras, na primeira metade do século XX. O teatro com as óperas de Verdi e outros compositores italianos e o cabaré com os shows de legítimo can-can com legítimas dançarinas francesas. O Theatro Municipal foi demolido em 1958, em razão do temor que se tinha à época do piromaníaco, alemão, que incendiara vários casarões. O velho Theatro Municipal estava em sua lista pirotécnica apreendida pela polícia e assim, não foi preservado como patrimônio cultural. Por outro lado, a memória do cabaré pareceu ainda mais duvidosa, inibindo qualquer ação que visasse seu tombamento ou mesmo a produção de textos sobre a sua história. Ao contrário, nas capitais e nas estâncias hidrominerais, a crônica sobre essas casas foi bem generosa, como conta a historiadora Mary Del Priore, em longo estudo sobre o papel da mulher, o amor, a prostituição, a repressão sexual e a liberação desde os tempos da escravidão aos dias atuais (História do amor no Brasil- Ed Contexto, 2005). No Rio, por exemplo, a capital da República, a prostituição ganhou espaço no final do século XIX e início do século XX. Foram construídos grandes bordéis e zonas de meretrício como os cabarés, cafés-encontro, pensões-chiques, teatros e restaurantes que facilitavam os encontros. Até mesmo a famosa Confeitaria Colombo, que era frequentada, das 14 a 17 horas, por senhoras de família, recebia após as 17:30h as “damas” interessadas nos fregueses. Tem-se notícia, aqui em Brasília que o doce Marmelada Santa Luzia, produzido nos quilombos da região, era muito apreciado na Confeitaria Colombo, do Rio de Janeiro.
   
           No Rio e cidades turísticas havia uma grande entourage nesse meio de diversão e entretenimento. A movimentação de dinheiro era intensa, envolvendo uma série de personagens como artistas, músicos, dançarinas e coristas, além dos garçons, cozinheiras, arrumadeiras, costureiras, manicures, cabelereiras e porteiros.  Havia ainda os meninos de recados para as damas da noite de diversas nacionalidades e seus fregueses, além dos agenciadores e porteiros que controlavam o movimento. Isto era, segundo os historiadores, o grande espetáculo noturno da cidade maravilhosa e que movimentava muito dinheiro. E parece, segundo a historiadora citada, que o comportamento social daquela época determinava a procura pela prostituição: os padrões, as normas de comportamento e os valores morais vigentes (valorização da virgindade, monogamia e o patriarcalismo) que conferiam ao homem uma liberdade sexual justificada e socialmente aceita. Havia, portanto, certa aceitação, ainda que hipócrita, dos cabarés e da prostituição em recintos fechados.

             A palavra cabaré tem origem francesa, cabaret. É um local destinado a shows com mulheres e os nomes mais comuns são boate ou casa noturna, com apresentações sensuais, mas sem strip-tease. Já os cassinos eram casas de entretenimento muito populares e apreciadas pelas camadas sociais mais abastadas, principalmente na França da Belle Époque, período que teve início no final do século XIX e se estendeu até o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Mas, há que se distinguir cassino e casas de prostituição. A historiadora Maria Del Priori cita que na antiga cidade do Rio de Janeiro, havia em três categorias, as aristocratas ou de sobrado, as de sobradinho e as da escória. As primeiras ficavam em bonitas casas com espelhos e piano, símbolo burguês do negócio. A segunda classe atuava em hotéis ou casas de costureiras. Esperavam os clientes nas ruas e os levavam para aqueles locais. Na terceira classe de pura hierarquia econômica e social, ainda de acordo com a autora, as meretrizes da escória moravam em cortiços ou casebres e mucambos, conhecidos como casas de passes.

            Essa classificação não mudou muito, apenas se sofisticou, com ligeiras alterações. Em BH, onde trabalhei no final da década de 1960, havia o Cabaré da Madame Olímpia, na Avenida Oiapoque. A zona do baixo meretrício se concentrava na região da Rua Guaicurus. Mas, também havia, ali, os dancings Chanteclair e o Montanhês. Conheci este último, onde havia sofisticado restaurante. Contam os mais antigos, com descrição em blogs que “no salão de dança do Montanhês havia uma ótima orquestra e taxi gilrs para quem quisesse rodopiar pelo salão. As moças traziam, penduradas ao pescoço, uma bolsinha com fichas e um picotador de papel. A duração da dança correspondia ao número de perfurações no cartão, de modo que o usuário fizesse o acerto à saída”.
            
         Não muito longe dali ficava o cabaré mais sofisticado de classe média, a Casa da Zezé, do outo lado do córrego do Arrudas, na avenida que tem o nome de um lavrense ilustre e que foi presidente (governador) do estado, Francisco Sales. A Casa da Zezé lembrava o estilo do Taça de ouro, com grande salão, musica eletrônica e belas mulheres a convidar os rapazes para um drinque, dança e, naturalmente encaminha-los para os quartos dotados de certo conforto e boa decoração com quadros de pinturas francesas nas paredes. Lugar para um relaxamento após um dia de serviço, como bem detalhou a historiadora, Del Priori. Disse, ela, na antológica obra sobre a história dos prostíbulos que “o bordel funcionava como uma fuga para uma sociedade que de dia trabalhava e tinha diversas limitações morais sexuais” e ali, no bordel, além de negócios, o homem encontrava “o som de musicas animadas e mulheres liberadas sexualmente”. Se casado, o homem procurava variar suas fantasias sexuais que, em casa eram literalmente proibidas pelos cânones religiosos e pela moral feminina da época, que era educada apenas para procriar. Se rapaz, tinha por princípio a obrigação de devolver à casa dos pais da namorada, no mais tardar às dez horas da noite, a mocinha pura, intocada e o fazia com orgulho, pois aquela era uma namorada para se casar. Cumprida a obrigação moral, dali mesmo corria para o bordel, onde tudo era permitido e assim dava vazão à sua libido. Esse era o costume até os anos de 1970, pelo menos.

        Se por aqui em nosso meio essas atividades de entretenimento e prazer eram limitadas, em Paris havia uma profusão de cabarés.. O Moulin Rouge e o Lido eram os principais no final do século XIX. Neste último era o ponto de encontro de artistas para beber, debater ideias, jantar e assistir shows de danças e outras atrações. Nos EUA os cabarés só tiveram início a partir do final da guerra, em 1918. Esse estilo jantar-espetáculo perdura até hoje no mundo inteiro. Nesse contexto social brasileiro e mundial, o Taça de Ouro, quando foi fundado em Lavras, nos anos de 1920, estava mais para cabaré, se levarmos em conta que existiam dois salões de dança, com orquestra própria. Um dos músicos, mesmo com idade avançada, contou-nos que tocava gaita na orquestra que era muito animada. Era um ambiente muito luxuoso, pois além das bailarinas francesas, servia bebidas importadas, música ao vivo e ostentava uma grande placa com letras luminosas, bem estilo “a la France”.  Durante a gestão do Monsieur Henry Avalon, até a década de 1940, os shows de can-can com as bailarinas francesas eram a principal atração. Ali só frequentavam homens importantes, ricos fazendeiros e empresários, conforme relatos de dois assíduos frequentadores, naquele distante passado. E não é de se admirar, pois o cabaré chegou na época certa. Em 1867, por exemplo, chegava ao Rio de Janeiro a primeira leva de prostitutas polacas. Eram 104 e apenas 37 seguiram para a Argentina. E nos anos seguintes esse número só cresceu, conforme estudos publicados pela PUC-RJ. No início do século XX, o Rio de Janeiro era uma cidade muito populosa e sem empregos e ainda a discriminação da mulher nas atividades econômicas, só lhes restava a prostituição, daí haver sido a época em que mais se proliferou a atividade de cassinos e assemelhados. Não havia repressão por parte da polícia, daí receberem a alcunha de casas de tolerância, onde, obviamente imperava a atividade de cafetinismo. E o fluxo de prostitutas estrangeiras era considerável, especialmente as francesas e polacas. Para o brasileiro, dormir com uma francesa era como se sentir em Paris, um legítimo francês, dizem os historiadores.
            
                Enquanto isso, em Lavras, a 150 km das estâncias hidrominerais e 400 km do Rio de Janeiro, o chique e caro Taça de Ouro prosperava. A seu redor proliferaram as casas de tolerância mais humildes, conhecidas por inferninhos, casa da luz vermelha, zona e tantos outros nomes. Essas casas mais populares se estendiam por quase toda a Rua Álvaro Botelho, começando em frente ao cabaré francês, na esquina da Rua 14 de Agosto.  Logo ao lado havia uma em especial, bem humilde, que se chamava “Caixote em Pé” .Tinha esse nome porque na entrada ficava um guarda sentado em cima de um grande caixote de madeira, contou-nos o Sr. Luiz. Os pobres coitados que frequentavam o “Caixote” tinham tristeza por não terem condições de conhecer o Taça de Ouro. Quando uma das dançarinas saía às ruas, causava o maior frenesi, pois era coisa do outro mundo ver uma mulher “importada”, com maquiagem acentuada e trajes bem sumários.
            
             Entretanto, mesmo naquele luxuoso ambiente do cabaré francês havia reclamações. Um dos gerentes, Vitório Canelli, muito cioso do faturamento de uso dos aposentos (havia vários quartos para as intimidades de praxe, como nas pensions d´artistes, do Rio ou de Paris), gritava bem alto: “pára o jazzo..., pára o jazzo...” ao menor sinal de que os quartos estavam ociosos. Era natural que isso acontecesse pois a boa orquestra (jazz) se empolgava na música fazendo com que os clientes se esquecessem de “alugar” o quartos. Parando-se a música, os “entusiasmados” cavalheiros não podiam ficar parados com sua dama, ali no meio do salão, de tão “embaraçados” que se encontravam e corriam a alugar os quartos. Tática infalível... e o gerente italiano mostrava-se mais sabido que o dono francês.
            
            As demais casas, mais humildes e que formavam o conjunto popularmente chamado de “zona” (zona do meretrício), se estendiam por quase toda a rua em direção ao sobrado do Joaquinzinho, prédio de dois andares, que ficava bem ao final da Rua Álvaro Botelho. Ainda hoje encontra-se lá, salvo da demolição. Ali era o ponto final dos “inferninhos”, os quais foram proibidos de funcionar, pela prefeitura municipal, na década de 1970, pois também havia residências e estas eram obrigadas a ostentar placas bem visíveis, com os dizeres “CASA DE FAMÍLIA”. Caso contrário seriam importunadas com visitantes indesejados, à procura de prazer.   


 
Em 1920 a cidade de Lavras tinha, praticamente, uma só rua, lamacenta e servida pelo bonde, a chamada rua Direita. Começava na Estação da Oeste e subia morro acima, por uns cinco quilômetros, até a atual Praça do Trabalhador, na confluência das ruas Francisco Sales, Melo Viana, José dos Reis Vilela e Rui Barbosa, a antiga Rua Umbela. Para se chegar ao morro do Cruzeiro, no alto da atual Rua Melo Viana,  existia apenas uma trilha.
Na foto, aparece, à esquerda, o grande prédio do Grupo Escolar Firmino Costa.

Foto: arquivos de Renato Libeck




Mais casos do cabaré francês

               Interessante notar que as teúdas e manteúdas não eram privilégios apenas dos coronéis baianos do cacau, conforme relata Jorge Amado em Gabriela Cravo e Canela. Também em Lavras os coronéis e barões do café se davam a esse luxuoso e dispendioso prazer com suas cortesãs, instaladas em casas, às suas expensas, geralmente nas proximidades do cabaré. Isto porque as “damas” quase sempre, na ausência do coronel, davam uma escapadela até o Taça de Ouro, ainda que às escondidas. As histórias a seguir são verdadeiras e tiveram apenas os nomes dos protagonistas trocados para garantir a privacidade de descendentes, incluindo o próprio menino das Lavras. Um dos casos mais inusitados foi o de Ciro Damásio, negociante de produtos frigoríficos produzidos em Campo Belo, para onde sempre viajava. Corria o ano de 1954 e certo dia anunciou em casa que viajaria para aquela cidade, por um período de uma semana. Três dias depois de sua partida, o filho Ivo, menino de apenas 12 anos, voltava do pasto, onde hoje é a Vila Murad, após apartar os bezerros de meia dúzia de vaquinhas leiteiras que seu pai ali mantinha, resolveu atalhar caminho pelos lados do famoso cabaré e deparou-se com uma cena inesperada, surpreendente. O episódio ficou gravado em sua memória para o resto da vida, a ponto de ainda hoje, mais de meio século depois, se lembrar do acontecido nos mínimos detalhes e relatá-lo, ainda agora, com a mesma emoção que experimentara naquele dia.      
            
           A missão do garoto, após a tarefa no curral, era encontrar-se com sua mãe, na casa da avó, situada um pouco abaixo do cemitério, na Rua Pedro Moura. Estava escurecendo e por isso não quis dar a volta pela Rua Umbela (atual Rua Rui Barbosa....) onde alcançaria o bar Polar, a Rua Francisco Sales onde morava, e percorreria toda a sua extensão até o grupo Escolar Firmino Costa alcançando a Pedro Moura, a um quarteirão à esquerda. Em vez disso, atalhou, direto, pela Rua 14 de Agosto, atravessou a Chagas Dória, prosseguindo a14 de Agosto até a esquina da Álvaro Botelho. Nessa famosa esquina e já quase escuro, vislumbrou as luzes azuis e vermelhas fluorescentes brilhando. Era o Cabaré francês, Taça de Ouro...! Arregalou os olhos de menino curioso para melhor ver o lugar proibido. Afinal, menino entrando na puberdade o interesse era em dobro. Aproximou-se e levou um baita susto... O Jeep Willys de seu paizinho (como ele o chamava) estava ali estacionado, bem em frente à porta principal do luxuoso cabaré. Conferiu detalhes, a placa e tudo. Era ele mesmo., pois até as botas e o chapéu, jogados na parte de trás do jeep, conferiam.. é mesmo o paizinho, concluiu Ivo. Como assim? Não estaria ele em Campo Belo e ainda faltavam uns dois dias para voltar? Mas poderia ser que o paizinho tivesse emprestado o jeep para algum amigo, ou adiantou a volta. Foi conferir. Temeroso e coração disparado a mil, aproximou-se da porta principal, de onde fulguravam as luzes e ecoava o som alegre, com mulheres deslumbrantes a bailar como quem convida os cavaleiros para uma dança. A porta, recortada horizontalmente, tinha apenas a parte de baixo fechada (seria para evitar a entrada de cachorro ou crianças que eram abundantes, na rua? Nunca se saberá...). Abaixou-se, quase engatinhando, aproximou-se e cuidadosamente levantou a cabeça buscando ver o que havia lá dentro. Ingrata surpresa, lá estava seu paizinho, acompanhado de três outros amigos que o menino conhecia muito bem, o Chiquito, Paulo do Nilson e um tio, justamente o mais querido, conhecido por Capitão, seu padrinho. Abaixou-se, assustado, voltou a olhar quando uma garçonete em trajes sumários servia a mesa. Imaginou mil e uma aventuras, mas, a realidade chocante foi maior. Era demais para o menino... Saiu em desabalada carreira rua abaixo, coração disparado, contornou os fundos do cemitério, chegou ofegante à esquina do Sr Arganti, dobrou à esquerda e chegou à casa da vó. Entrou cabisbaixo, pediu a benção da matriarca e da mãezinha que estava com um bebê colo. Voltou para a soleira da porta da sala e ali ficou pensando como iria contar o que viu.
           
             À saída, depois de uma meia hora e já na porta da rua, a vovó perguntou à mãe do menino cabisbaixo, para onde havia viajado e quando Ciro voltaria. Antes que ela respondesse, Ivo disse: mãezinha, o paizinho não viajou. Ele está agora, ali no Taça de Ouro, ele e os tios. As duas mulheres se entreolharam, estupefatas com a notícia dada pelo menino de apenas 12 anos. Não acreditaram, mas diante da firmeza e detalhes repetidos e o semblante de espanto do filho, a mãe entregou o bebê para a sogra e foram, os dois, mãe e filho, caminhando lépidos até o Taça de Ouro. Para sorte de Ciro, os quatro amigos haviam acabado de sair e segundo o porteiro, haviam entrado numa casa próxima, apontando-a. Ivo reconheceu–a como a casa de um dos tios que estavam com seu paizinho e para lá se dirigiram. Lá encontraram os quatro homens e a companheira de um deles. Era uma companheira fixa, manteúda de casa montada pelo fazendeiro Capitão, como era conhecido. Era comum, naquela época, os fazendeiros retirarem do cabaré aquela de sua preferencia e viver maritalmente com a mesma e com exclusividade. Havia amigos que juravam que essa “exclusividade” era um tanto duvidosa e todos nós, os rapazes sabíamos disso e alguns até tiravam proveito. Mas, pelo sim, pelo não, foi o que aparentemente salvou Ciro de uma situação pior. Estava ali, segundo ele, para tratar de negócios com o amigo e tinha ido ao Taça de Ouro apenas para busca-lo. Ainda assim ele teve que se explicar para a esposa e a mãe, a vovó, que ficara apreensiva, com o menorzinho no colo, aguardando uma tragédia maior.
           
             Ivo, que tornou-se  médico e mora no Rio de Janeiro, ainda hoje confirma a história com muita graça, mas segundo ele próprio, nunca acreditou na versão do pai que era um irreverente festeiro e gostava de brincar e fazer piada com todos. Certamente o Sr Ciro ficara hospedado na casa da manteúda de seu compadre e dali transitavam para o Taça de Ouro. Ninguém nunca mais falou nisso. Nem os amigos nem ele próprio, pois numa sociedade com viés patriarcal, autoritário, vigente nos meados do século passado, o melhor era mesmo aceitar, ou fingir acreditar na versão apresentada pelo protagonista. Acreditar ou não, nem importava. Valia apenas a palavra ou a ordem do coronel, ou melhor, no caso do capitão, amigo do pai e marido flagrado no cabaré. Aliás, o uso de títulos nobiliárquicos adquiridos pela elite rural, era costume desde a época do império e demonstrava poder e prestígio na sociedade dos séculos XIX e XX em sua primeira metade. 


                     
O fazendeiro Ciro e sua bela montaria, bem arreada. Um luxo! Porém, não estava nela quando flagrado no Taça de Ouro e sim no seu Jeep Wyllis . (Foto: arquivos do autor ).  Ao lado, Madame Pompadour,  a poderosa cortesã do rei Luiz XV,  Ivo, ainda hoje, médico no Rio de Janeiro, aos 12 flagrou o pai no cabaré Taça de Ouro. Disse que a manteúda do capitão, seu padrinho e amigo de seu pai, era bonita. Mas, não soube dizer se se parecia com a Madame  Pompadour,   Foto: internet


             Há ainda muitos casos acontecidos por mais de cinco décadas naquela casa de diversão, mas, para isso teríamos que editar um livro de mais de mil páginas. Entretanto, não se pode deixar de contar outro, bastante engraçado. O fazendeiro, viúvo, Sr Fábio, morava na cidade. Naqueles anos de 1940/50 a maioria deles ainda morava nas fazendas e só os filhos residiam, com a mãe, na cidade para estudar. Este, no entanto, por ser viúvo, decidiu morar na cidade, na esperança de arranjar novo casamento. Era frequentador assíduo do Taça de Ouro. Dizem que tinha uma preferida por lá e gostava de presenteá-la com uma dúzia de ovos, fresquinhos, colhidos no galinheiro de seu imenso quintal que se estendia da Francisco Sales até a Misseno de Pádua. Todos os sábados, à tardinha tomava seu banho de chuveiro de água aquecida pela serpentina do fogão à lenha (nos anos 40/50 os fogões eram todos à lenha, pois o gás só se difundiu em Lavras a partir dos anos 60/70), vestia a melhor e mais alva cueca samba canção de algodão Canário ou morim Ave-Maria, que era fabricado em Taubaté desde o ano de 1910 e colocava o indefectível e o indispensável terno de brim cáqui (fazendeiros só andavam, a pé ou de Ford T 29 ou ainda à cavalo, trajando terno de brim, resistentes e leves e o chique chapéu de couro de lebre, da marca Prada ou Ramenzoni, importado da Europa). Perfumavam-se com uma agua de cheiro, comprada no Armazém do Julinho ou do Manoel Alves e pronto estava para a visita esperada ansiosamente a semana inteira. 

                  Antes, porém, o Sr Fábio, todo faceiro, pegava o presentinho, apenas um mimo para a amada e para não chamar atenção dos familiares, escondia os ovos nos bolsos laterais do paletó. Meia dúzia, empalhados, em cada lado. Mas, havia um senão. Seu vizinho era nada menos que o Sr Chiquinho Narciso, o homem mais alegre e brincalhão que viveu nas Lavras dos anos de 1920 a 2.000. Adorava um “mal feito” e para tanto não escapavam nem os vizinhos de sua Farmácia Santa Terezinha. Assim, sabedor da mania de levar ovos nos bolsos para a sua manteúda, do Taça de Ouro, fazia questão cumprimenta-lo, quando passava em frente à farmácia, dando fortes tapas com ambas as mãos na altura dos bolsos do paletó. Não sobrava um único ovo..... , desastre meloso e amarelo sem igual. Chiquinho gargalhava e toda a plateia em volta delirava com a embaraçosa situação. E mais gargalhavam quando, cerimoniosamente, logo em seguida apresentava um formal e cínico pedido de desculpas ao amigo.  Fábio, depois de uns três encontros desastrados com o “amigo”, tratou de desviar o caminho. Do outro lado da rua , matreiramente, dava um adeusinho para seu algoz, longe dos “efusivos” abraços.... Este, mesmo assim, caía na gargalhada reconhecendo que fora logrado e gritava: não se esqueceu dos ovos, não? Mas, o melhor de tudo era mesmo ouvir o Sr Chiquinho contar o caso. Não havia quem não caísse na gargalhada. Repetiu essa história por mais de quarenta anos a todos os amigos, mas longe das mulheres, pois dedicava-lhes extremo respeito e consideração. Um “gentleman”, o Sr, Chiquinho Narciso, cuja casa frequentávamos para ouvir as audições de piano de sua filha.  


 
A Pharmacia Santa Therezinha , do Sr Chiquinho Narciso, bem em frente ao bonde, do lado esquerdo da foto. Em frente, era o consultório dentário do Dr Gil Serra Negra. Ali o menino das Lavras tratava de dentes e morria de rir das “palhaçadas” que o Sr Chiquinho aprontava com quase todos os passantes ou fregueses. Seu vizinho, Sr Fábio, “sofreu” com suas gozações e pior, a quebra de ovos em seus bolsos, presentinho que levava para sua manteúda no Taça de Ouro.
Foto: arquivos de Renato Libeck 


                  Para não se estender muito aí vai, por hoje, o último caso, do carteiro Benício. Rapaz cheio de trejeitos, não era muito chegado às meninas. Tinha pavor de entregar cartas no cabaré, pois as “meninas” vinham recebê-lo seminuas e se insinuando, só para contrariá-lo. Sabendo disso, muitos rapazes escreviam cartas para as damas francesas, as mais escandalosas no vestir e no falar em seu idioma nativo. Não tinham motivo algum, ou mesmo carta nos envelopes a não ser causar constrangimento ao carteiro. Assim, os impiedosos rapazes se reuniam para assistir a cena da entrega das cartas às meninas do Taça de Ouro dos bonjour.., merci...  Sr Luiz o conheceu e tinha muita pena dele, embora muitos dos malfeitores fossem seus amigos. Mas era impossível detê-los diante da “festa” do constrangimento, a inquietação do carteiro e a malícia das meninas francesas.
                       
                   Pois não é que o cabaré francês das Lavras do Funil marcou época? Mas como, se nós da geração jovem dos anos 60 nunca soubemos dessa história? Segredo? Só vimos o cabaré que o sucedeu, o Capixaba, no mesmo endereço e nada soubemos do anterior. Assim era a sociedade na primeira metade do século 20. Conservadora, rígida nos costumes machistas onde, segundo a historiadora Maria Del Priore, o papel da mulher era de completa submissão, de verdadeira repressão sexual. Ao homem, os machistas, tudo era permitido em nome de que a ela dever-se-ia preservar a virgindade, a castidade e ele que se valesse das teúdas e manteúdas ou ainda da prostituição nas casas de tolerância, cujo nome já é explicativo para tanta hipocrisia então vigente. Mas, ainda assim o Cabaré Taça de Ouro, genuinamente francês, deixou saudades e marcas em muitos que viveram sua juventude naquela primeira metade do século passado nas Lavras do Funil. Minha geração, nascida no pós-guerra, não chegou a conhecer a exuberância do Taça de Ouro. Sucedeu-lhe a Boate Capixaba e toda a "zona" propriamente dita. Ali,  amigos e familiares "mais experientes", levavam os jovens rapazes de 16 anos para conhecer as "meninas" pela primeira vez. Esse era o costume da sociedade de então que a tudo permitia aos homens, desde cedo, e nada às mulheres. Felizmente essa hipocrisia moralista não mais perdura. Hoje, essa questão é tratada mais conscientemente entre os jovens, rapazes e moças.

            Deixo meus agradecimentos a aqueles que já se foram, Pedro Neves, Henri e seu filho Jorge Avalon, o famoso Sr. Chiquinho Narciso e ainda aos amigos dos quais recebi os relatos, principalmente a essa fortaleza nonagenária, memorialista sem igual das histórias de Lavras, o amigo Luiz Teixeira da Silva, ao qual dedico essa crônica narrativa. Também garanto que em minhas demoradas missões de trabalho na França, ou mesmo na última viagem que fiz para duas semanas de puro deleite na Cidade Luz, não fui conhecer nenhum cabaré, a não ser a fachada de um mais famoso. Paris tem muitas atrações. Museus, jardins, cafés, livrarias e monumentos ali não faltam. Foram tantas as atrações que quinze dias não foram suficientes. Veja algumas nas fotos ao final. Cabaré? Ah... é um “trem” muito perigoso, diz Sr Luiz, que viu muitos rapazes chorar diante dos suplícios na Santa Casa e jurar “nunca mais”... Será?

Brasília, 26 de janeiro de 2016

Paulo das Lavras 





Cabaré  “é um trem muito perigoso”, dizia Sr Luiz Teixeira, que conheceu
 o famoso cabaré francês de Lavras...
Bem..., em Paris, o jovem menino das Lavras, preferiu não fazer reservas para o Kabaret de la derniére chance... Um monte de documentos sob o braço, muito serviço à vista, ali na Cidade Luz....






 
Fala sério... Será um Cabaret em Paris? Não, apenas comprando um
 novo perfume recém-lançado. Somente grandes capitalistas levam um cabaré inteiro para outro país.
Levar um novo perfume  já está de bom tamanho....





 
Não havia tempo sobrando, só trabalho. Nesta foto, em Paris, recebendo no Ministère de l´Agriculture/ Division de l´Enseignement Agricole Superieur, uma delegação brasileira de dirigentes universitários. O primeiro da direita é o diretor da então Escola Superior de Agricultura de Lavras- Esal, Prof. Juventino.



Outra boa opção, dentre tantas na Cidade Luz, são as livrarias, onde é possível encontrar qualquer título de livro. Uma festa para leitores compulsivos


 
..ou então sair às compras e almoçar em restaurantes com terraços de magníficas vistas para a cidade, como este que deixa ver a Catedral de Notre Dame, ao fundo, à esquerda.


E para dizer que não visitei casa de cortesã, aí está uma que foi além. A dona desse castelo casou-se com ninguém menos que o Imperador Napoleão Bonaparte. É o Castelo de Rueil Mal-Maison, de Josephine, situado na ville de mesmo nome, onde me hospedava. Luxuosíssimo em seu interior. Seus degraus do primeiro para o segundo pavimento eram bem baixinhos, pois a imperatriz era de pequena estatura física.




Um luxo a sala de visitas do Castelo de Josefine. Mas, o Imperador Bonaparte, não morava ali com ela....


... e como Napoleão Bonaparte, ela era ainda mais baixinha. Por isso a altura de cada degrau da escadaria era tão pequena. Apenas uns 10 centímetros, contra 17, do normal. Dizem que as medidas foram conferidas milimetricamente pela pequenina Josefine.




Se não quiser visitar museus e castelos, não só de cortesãs, uma boa opção é tomar um café, na calçada de um romântico café, como o famoso Café de Flore. Um livro, lap top, tablet ou smartphone conectados à rede Wi-Fi e lá se vai o tempo..., mesmo sob rigoroso frio de zero grau, de dezembro. Aliás, os aquecedores elétricos, como se vê na foto , na cor amarela, no teto, garantem pleno conforto. Ah... o cachimbo é apenas enfeite...rsrs, e como se fuma nas ruas de Paris. O café veio em seguida ... e puro café du Brésil! Et voilá...

  


À noite, um passeio pela mais charmosa avenida da cidade para apreciar a decoração natalina com o Arco do Triunfo ao fundo. Monsieur Henri Avalon, que aqui viveu e recepcionava nossos barões do café, levou um pedaço de Paris para o Taça de Ouro. Ouro, sim, áureos tempos aqueles nas Lavras do Funil, produtora de cafés finos, os quais, aliás, ainda hoje são servidos na Cidade Luz.







                               











                                                 
                                                                                                                                




3 comentários:

  1. Muito interessante esta crônica! Como sempre. Mas o que mais apreciei foi a elegância desse meu colega dos anos dourados!

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  2. Obrigado, prezada Maria Lucia, colega dos tempos de colégio nas Lavras do Funil. Hesitei bastante em escrever sobre esse delicado tema, porém real, pois existiu o tal cabaré em Lavras. Abordei a questão de forma mais suave, situando-a no contexto histórico e social de nosso país. Eram assim os costumes ali descritos. Os casos que relatei são todos verdadeiros e em alguns preservei os nomes dos protagonistas.

    Essa crônica foi gestada em Paris, quando me deparei, ao sair de um almoço, com o tal Kabaret Bataclan, numa das ruas da capital francesa, com um vistoso e sugestivo convite que aparece numa das fotos e para completar, o passeio a bordo do Bateau Mouche, com requinte dos tempos dos barões do café, conforme descrito na literatura nacional. Assim a lembrança dos anos dourados do então jovem executivo internacional, aguçaram a memoria do menino que, ao ouvir os relatos de amigos que foram protagonistas das histórias ali contadas, nos incentivaram a escrever a crônica. Um tema sensível, sim, mas abordado de maneira leve e por isso fiquei contente pela repercussão de um pedaço da história de nossa terra.

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  3. Parabéns pela crônica.Tenho 63 anos e fui um boêmio dos anos 70 em Lavras MG.Um tema sensível?Sim.Porém, esta forma de escrita se sustenta também na concepção de que a abordagem de temas sensíveis reivindica um registro o mais plural possível, possibilitando que diferentes vozes se apresentem no diálogo.Gostei muito.Abraços!Geraldo Fernandes.

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