quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Os sinos de Lavras, acordes de Gounod e os canhões de Napoleão

 

Coloquei as mãos sobre aquele histórico canhão das tropas de Napoleão que lutaram na Sibéria. Enregeladas pelo cortante frio abaixo de zero na capital francesa, onde estavam expostos alguns daqueles canhões, fechei os olhos em busca dos “arquivos” da mente sobre a história que tanto me fascinava nos tempos colegiais. Respirei fundo, destravou-se o gatilho da alma que disparou as imagens armazenadas nos escaninhos da mente e que sempre são "exibidas" quando nos deparamos com um objeto ou situação que tem relação com os eventos. Imerso naquele filme que rolava na imaginação e depois de alguns segundos naquela letargia, ouvi a voz do colega que me acompanhava:  Professeur.., professeur, est ce que vous n´êtes pas bien? Apenas gesticulei com a mão e prossegui no meu sonho em quase estado hipnagógico. E esse gostoso estado de transcendência acontece com bastante frequência quando o menino se põe a ouvir a belíssima composição do russo Tchaikovsky, a Abertura de 1812. Ali não foi diferente, com o forte apelo presencial daqueles canhões verdadeiros e que foram protagonistas de um dos mais significativos eventos da História, tinha tudo para dar continuidade ao “filme” mental e não se deixar interromper pelo chamado do amigo ali presente, preocupado com a demora daquela "estátua" meditativa, paralisada e apaoiada com a mão sobre o congelado canhão. Mas, a ópera, cujo filme rodava em minha mente, um belíssimo épico que termina com o troar dos canhões disparando várias vezes com furor e o repicar de uma alegre e festiva sinfonia de fortes badaladas dos sinos de toda a cidade de Moscou anunciando a derrota do invasor, Napoleão Bonaparte. E as emoções não param por alí, ou melhor, começam logo na abertura da obra por uma melodia leve e tranquila evocando o hino russo. Em seguida o ambiente torna-se pesado e angustiado, retratando a ameaça das tropas napoleônicas. E nesse contexto entram os acordes da "Marselhesa", em tom triunfal, revelando a vitória dos franceses. Mas, como dito no começo, foi uma vitória inicial apenas, pois ao final da guerra o exército de Napoleão, que contava com 600.000 homens, ficou reduzido a apenas 40.000. Ele não contava com o “general inverno” e a destruição de Moscou que os russos incendiaram, justamente para não dar guarida ao inimigo. E aí então termina esse épico concerto de Tchaikovsky com o fragor dos canhões que disparam 16 tiros, seguindo-se o repicar dos sinos da catedral de Moscou e de toda a cidade, comemorando a vitória final sobre Napoleão. São elementos muito fortes que imprimem um profundo caráter emotivo na alma. Não há como não se entrar no enredo e não se deixar emocionar pelos acordes que têm cadencia muito dinâmica e diferenciada, de paz, bravura, euforias e tristezas do povo russo retratado como pacífico, que vive nos campos e sofre a violência da invasão napoleônica.

Diante de tanta beleza e harmonia sinfônica, que o menino sempre ouve em casa, no carro ou mesmo no avião, como ainda outros elementos marcantes de sua infância e juventude ali presentes, é impossível não disparar o gatilho que deslancha o filme na memória distante das doces reminiscências. Assim, chegam-lhe aos ouvidos, ou melhor, à memória, os sinos de sua cidade natal e outras reminiscências. Em todas as pequenas cidades do interior das “Geraes” o repicar dos sinos das igrejas fazia parte do cotidiano, nas festas de Semana Santa com suas procissões, nas missas de domingo, nos casamentos e até mesmo nos enterros.  Cada qual com seus toques e cadências próprios, característicos e facilmente reconhecidos, disparando emoções ora alegres, ora tristes.

Mas, além dos repiques dos sinos, havia em Lavras outro sonar bem característico. Às seis e trinta da matina, invariavelmente, a sirene da fábrica de tecidos nos avisava que o dia estava começando. Era o primeiro dos avisos para que às sete horas estivéssemos todos a postos, meninos na escola ou os operários na fábrica e nas Oficinas da Rede Mineira de Viação- RMV. Dali, da Fabril Mineira, ecoavam as estrondosas sirenes, ouvidas a cinco quilômetros morro acima. Até parecia que a longa Rua Direita servia de canal sonoro, tal era o volume de decibéis propagados. Era também a hora de o bonde deixar a sua garage, a famosa Distribuidora, onde a energia elétrica trifásica era transformada em monofásica e lançada à rede aérea para movimentar o pesado veículo sobre trilhos. Em cinco minutos chegava e partia de seu ponto final na confluência das ruas Melo Viana e Otacílio Negrão. Hora dos meninos se aboletarem nos estribos e driblar o cobrador Gerson e o motorneiro Cirilo que, compreensivamente, faziam vistas grossas à meninada que ia para o colégio e não tinha os cinquenta centavos para pagar a passagem.

Sinos..., ah, os sinos. O repicar dos sinos nas noites de natal ou nas festas de Semana Santa....A igreja matriz de Lavras, com sua imponente torre, era por assim dizer o ícone da cidade. Nela podiam ser vistos o enorme campanário mostrando parte dos sinos de bronze e os mecanismos do relógio de quase dois metros de diâmetro. Podia ser avistada de longe e seu relógio badalava a cada meia hora. Havia também um alto-falante de cada lado e que servia para a reprodução da Ave- Maria as seis, doze e dezoito horas. Não há quem não se lembre daquele tenor despertando a todos, bem cedo, com os melodiosos acordes de Gounod, ou então, a mesma Ave-Maria orquestrada com violinos a engalanar uma cerimônia de casamento com pompa e circunstância na igreja matriz, a mais preferida pelas noivas. Mas, o mesmo sino festeiro também provocava emoção oposta com seus tristes repiques nas cerimônias fúnebres. Talvez pelo sentimento de perda de um ente querido, amigo ou mesmo de um simples cidadão, ouvíamos compungidos aquele toque dolorido, espaçado como a nos convidar a refletir sobre os valores da vida. Vida efêmera que ali estava representada por aquele que partia para sempre. Em respeito, o comercio baixava as portas, numa especial deferência ao féretro em direção à última morada, logo ali adiante a quatro quadras da igreja. Morador que fui, por quase um ano, nas proximidades da esquina de Francisco Sales com Barbosa Lima, a poucos metros da Matriz, presenciei inúmeras vezes essas cerimonias. O sino da matriz de Lavras marcou profundamente a vizinhança com suas alegrias e tristezas e hoje, em distantes terras, resta-nos a alegria de suas reminiscências.

Mas, havia também outro sino, o da igrejinha de Santa Efigênia, no 8º Batalhão de Infantaria, nos altos da cidade. Construída em 1952/53 por pedreiros militares, como o saudoso amigo, sargento Bahia, o menino pôde acompanhar, de longe, toda a sua obra. Anos mais tarde, coroinha da paróquia se Santana, da Igreja Matriz, ajudava aos padres Tito, Luiz Tings, Miguel Moretti, Henrique Boeing e Raimundo Weillerman a celebrarem as missas de domingo, às oito horas da manhã naquela capela. Mas, o melhor mesmo era chegar mais cedo e tocar o sino de 15 em 15 minutos. Nem era preciso subir os degraus estreitos do campanário. Bastava alcançar o mezanino onde ficava o coral e dali se agarrar à corda e balançar de lá para cá, num espaço de pouco mais de três metros. Era como se fosse uma gangorra amarrada num galho de árvore. Aventura melhor não havia para o menino de 10 anos. Além de tocar o sino se divertia e enchia de inveja os demais garotos que não tinham autorização para subir até o campanário. Some-se a isso a alegria de contar para os adultos quem era o tocador do sino que chamava os fiéis para a missa dos domingos. Anos mais tarde, já interno no Seminário na distante Itaúna, assistiu ao filme “Marcelino Pão e Vinho”, e qual não foi a sua alegria ao ver a cena do pequeno Marcelino gangorreando na corda do badalo do sino de uma igreja, tal qual fazia na capela militar de Santa Efigênia. Mais tarde ainda, em visita ao Museu des Arts et Métiers, em Paris, assistiu à demonstração do efeito do Pêndulo de Foucaut, cuja experiência consistiu em amarrar uma corda no alto da cúpula da igreja e balançar continuamente, em movimento pendular, comprovando-se o movimento de rotação da terra. Ver aquele corpo balançando para lá e para cá, numa enorme corda de 67 metros de comprimento, pendendo da cúpula ao lado da igreja de Saint Martin des Champs, foi como um replay do menino balançando no campanário da igreja de Santa Efigênia badalando o sino para arregimentar os fiéis aos domingos.

Se antes o menino se emocionou com as imagens do filme de Marcelino agora tem presenciado, ao vivo, as salvas de tiros de canhão em Brasília. E os canhões foram majestosamente associados ao badalar dos sinos na belíssima composição de Tchaikovsky, a Abertura de 1812. Na capital, Brasília, excetuando-se o troar, ao vivo, numa única encenação daquela ópera na Esplanada, em comemoração ao Dia da Pátria, os canhões efetuam, frequentemente, a famosa salva de 21 tiros dando boas vindas aos dignitários estrangeiros nas visitas de Chefes de Estado. Essas tradicionais cerimônias protocolares, realizadas diante da rampa do Palácio do Planalto, além de outras próprias das comemorações militares, são executadas pelo Batalhão Caiena, da Guarda Presidencial, com seus reluzentes uniformes de gala ainda dos tempos do Império.

Mas, alegria diferente foi poder tocar e sentir os canhões de Napoleão com os quais lutou no rigoroso inverno russo. Por coincidência minha visita se dera justamente no período de inverno e a temperatura estava abaixo de zero grau. Aqueles canhões das longas batalhas napoleônicas, forjados em liga de ferro e bronze, estavam ali enfileirados, gelados e tendo ao fundo a bandeira nacional “Bleu, blanc et rouge”, na Place des Invalides. Aquele cenário, com todos esses elementos incluindo o ar gelado, me fez “embarcar” na célebre ópera de 1812, de Tchaikovsky, com a marcha da Marselhesa e depois os acordes das marchas russas comemorando a derrota do Imperador Napoleão, diante do tal “general inverno”, mais rigoroso que aquele gelado dia de dezembro de 2013 na capital francesa. Foi emocionante repousar a mão sobre o enorme e gelado canhão napoleônico e ao mesmo tempo desfilar na mente os acordes daquela belíssima ópera associada ao badalar dos sinos de minha cidade natal e também aos canhões do Batalhão Caiena em Brasília. Cenário perfeito para uma "viagem" no espaço e no tempo, de mais de dois séculos, pela milenar cidade de Paris, pelos campos gelados de São Petersburgo, a Praça dos Três Poderes, de Brasília e os sinos das igrejas da terra natal, tão presentes na memória.

Sinos..., por quem eles dobram? Eles dobram por ti, respondeu Hemingway em seu famoso romance imortalizado no cinema. Embora aquele autor fale muito da morte, da perda de vidas e os sinos nos chamem à reflexão, há também o enaltecimento à alegria da vida que as igrejas celebram em matrimônios, batizados e outras festas da liturgia. O próprio ato de convocar os fiéis, por meio dos sinos, já é uma celebração à vida, pois nenhum ser humano é uma ilha e congregar é preciso e faz bem à alma. Poucos se dão conta que os sinos dobram para eles que o escutam. Sei muito bem disso, pois entre nós que o tocávamos, a expressão era simplesmente: “vamos chamar o povo para a missa”. Quem nunca ouviu um sino repicar, ou não se recorda deles a soarem como que convidando-nos à reflexão, na alegria e na tristeza? E os acordes de Gounod, da belíssima Ave-Maria, ecoados do alto da torre da igreja?  E as salvas de canhões, entremeadas com efusivos repiques de sinos, imortalizados por Tchaikovsky em sua majestosa ópera? Ah... quem é que hoje, ao ouvi-los em qualquer lugar do mundo, não “viaja” de volta ao doce passado dos campanários das igrejas com seus sinos, relógios e alto-falantes?

Doces reminiscências..., os sinos e as sirenes da indústria de Lavras, os acordes de Gounod e os canhões do Batalhão Caiena, os de Napoleão rugindo ao lado dos sinos em belíssima sinfonia. Sabemos, sim, para quem dobram os sinos. Eles dobram por ti para que te lembres deles para sempre em doces recordações.

Brasília, 1º de agosto de 2014


Paulo das Lavras


 Igreja Matriz de Lavras e sua imponente torre. Década de
1960- rua calçada com paralelepípedo.
    Foto: arquivos de Renato Libeck

  

Igreja matriz de Lavras.
 Foto: do autor- 2015

Os relógios, alto falantes e o campanário dos sinos
Foto: Cristiano Assis


 
Belíssima foto, de autoria de Catarina Júlia, com o relógio e alto-falantes em detalhe.




A esquina de Barbosa Lima com Francisco Sales, a menos
de 100 metros da Igreja Matriz. A Ave Maria de Gunod me
despertava às 06:00 horas, com elevados decibéis e os sinos
 nos anunciavam as festas e crimônias de luto.
Foto do autor - 2015

Igrejinha de Santa Efigênia – 8º BPM – Lavras, onde o menino
gostava de tocar o sino nas manhãs de domingo.
Foto dos arquivos de Renato Libeck


Cia Fabril Mineira – fábrica de tecidos em Lavras. Sirenes que
 ecoavam às 6:30h, chamando a todos para o trabalho
Foto: arquivos de Renato Libeck


O bonde, que partia em sua primeira viagem, ao som das sirenes
                   da Fábrica de Tecidos, levando
operários e estudantes para o início das jornadas às 7:00 h em ponto.
Foto: arquivos de Renato Libeck



Cúpula de 67 metros de altura onde está pendurado o
Pêndulo de Foucault. Museu Des Arts et Métiers,  Igreja 
Saint Martin des Champs – Paris, dezembro de 2013
Foto do autor


Pêndulo derrubando a sequencia de pinos. Museu des Arts et Métiers
Foto:  Musée des Arts et Métiers 


Igreja de Saint Martin, onde está o museu do Pêndulo de Foucault,
Experiência de 1851 que comprovou o movimento de rotação da terra.
Paris- dezembro de 2013. Foto do autor


Canhões do Batalhão Caiena - Guarda Presidencial. Salva de
21 tiros nas solenidades de recepção a Chefes de Estado
Foto: PR

O troar assustador em dia de festa no QG do Exército, em Brasília
Foto: SecomEx


Os canhões de Napoleão, Praça des Invalides- Paris. Gelados, a menos
de zero grau, como a relembrar-me a derrota no inverno russo de 1812. Não
há como não imaginar e “ouvir”, ali mesmo e emocionar-se com a célebre ópera de 1812,
de Tchaikovsky, com a marcha da Marselhesa e
depois os acordes das marchas russas comemorando a derrota do
Imperador Napoleão, diante do tal “general inverno”, mais rigoroso que
        aquele gelado dia de dezembro de 2013 na capital francesa. 
 A lembrança dos acordes finais da ópera com a sinfonia dos sinos pipocando em regozijo pela vitória russa, e minha mão repousando sobre aquele canhão gelado, despertou lágrimas de emoção, pois também "ouvi e vi", ali na Praça des Invalides- Paris, naquele exato momento de emoções, os repiques dos sinos de minha distante cidade natal.

Paris, 13/12/2013. Foto do autor

 





E ouça o repicar dos sinos da Catedral de Moscou, ao final, e veja a beleza da ópera de Tchaikowsky:  https://www.youtube.com/watch?v=ZrsYD46W1U0