domingo, 10 de agosto de 2014

Dia dos Pais e a modernidade



O Dia dos Pais teria o mesmo glamour que o dia das mães? O que eles têm feito para melhorar as relações na família e na sociedade? Você se se considera um pai moderno? Mas, que perguntas inusitadas, afinal a data não é para festejar o dia dos pais? Por que então provocar polêmicas? Não seria melhor falarmos sobre o carinho e o amor que os filhos dedicam a eles? Receber o abraço de todos e ouvir elogios ao paizão? Sim e não. Sim porque é sempre bom exaltar o amor dos filhos aos pais, o reconhecimento e o respeito que devemos a eles. Nunca nos esqueçamos de que, se hoje somos bem sucedidos, devemos tudo a eles. Portanto qualquer homenagem que prestarmos a eles sempre será pouco em relação ao que recebemos. Mas, por outro lado, numa sociedade moderna, onde todos têm acesso à educação e amplos direitos, seria oportuno abordar questões mais abrangentes e de grande importância no seio da família e da sociedade em geral.

Somos frutos da cultura herdada, de geração em geração. Essa cultura é, antes de tudo, a imitação dos gestos de nossos antepassados. E nesse meio da cultura ancestral o pai sempre foi supervalorizado na família. Sempre houve o predomínio do machismo, ou seja, uma hierarquia muito antiga entre homens e mulheres que a antropologia explica muito bem. Mas, os tempos são outros e mudaram-se os costumes. O homem não vai mais à caça nas florestas e rios para alimentar sua prole. Passava o dia todo guerreando contra possíveis inimigos e feras. Estas tinham que ser abatidas e levadas para alimentar a família. Não participava da rotina da casa, ao contrário, chegava cansado e era alvo da atenção de todos, inclusive saboreando a melhor parte da caça preparada pelas mulheres. O “guerreiro caçador” era supervalorizado, pois não podia deixar de prover o alimento conseguido por meio de sua força e destreza. As mulheres ficavam relegadas em segundo plano, na tranquilidade da casa, daí surgindo a hierarquia machista, da força, do provedor. Mas, hoje os pais são diferentes. Nessa sociedade consumista as mulheres também têm que “ir à caça”, ou seja, trabalhar fora de casa com as mesmas responsabilidades e obrigações dos homens no mercado de trabalho. E aqui entra o novo conceito do Pai Moderno. Mas, o machismo ainda está impregnado em muitos de nós, de forma inconsciente e cultural. Trinta anos ou menos, nos separa do inicio da luta das mulheres pela igualdade de direitos, a chamada revolução feminista. Desde então tem havido progressos, mas esse tempo não é nada se comparado aos milênios da hierarquia machista. Por isso é preciso que os Pais de hoje se conscientizem com mais interesse e disposição sobre a nova função do pai na família.

É preciso que nós, os pais dessa geração de transição cultural para a era do Pai Moderno, ensinemos às nossas crianças essa nova forma de pensar o mundo, sem machismo, racismo e todos os “ismos” que caracterizem discriminação, qualquer que seja. E nessa nova tarefa educacional abolir o machismo e “colar” o conceito de pai moderno, participativo e presente. Esse deve ser o nosso desafio. Devemos pensar nas crianças e começar a conscientizá-las para esse desafio. Não nascemos machistas, mas podemos nos tornar assim pela convivência em meio que cultue essa prática. E é sabido que as crianças são menos condicionadas que os adultos, portanto é mais fácil incutir nelas o sentimento de igualdade entre homens e mulheres, pais e mães.

 Nossa responsabilidade como pai ultrapassa, em muito, a questão do sustento da família, até porque as mães, estatisticamente já ultrapassam os pais como provedoras do lar. Dividir com as mães as tarefas do lar e em especial a atenção aos filhos, não pode ser encarado como demérito para os pais. Se ela, a mãe, está dividindo conosco a tarefa de prover o sustento, a educação (caríssima, ainda que em escolas públicas) e tudo mais que uma família requer hoje em dia, por que então os homens não podem fazer o mesmo em relação ao lar? As consequências da “terceirização” da educação dos filhos (formação moral e escolar) têm mostrado resultados nada recomendáveis em alguns casos. É comum ambos os pais trabalharem em expediente integral, pois hoje o consumismo nos empurra para os excessos de produtos quase que descartáveis como celulares e eletrônicos obsoletos a cada dois anos, ou então a “obrigação” de possuir dois ou três carros na família, sem contar que cada um tem seu celular e até dois ou mais aparelhos por pessoa. É bom, traz conforto? Sim, mas não nos esqueçamos de que não podemos relegar nossos filhos à babá, à creche, para os que podem pagar, ou à rua que é a mãe da futura criminalidade. E infelizmente essa criminalidade já atinge, hoje, meninos e meninas de até nove anos de idade. Deve ser por isso que os consultórios de psicanalistas estão lotados de pais que confessam: “não sei lidar com os filhos, ou pior ainda, não dou conta deles”. Será que se os pais dividissem com as mães, com efetiva dedicação, a tarefa de educar e estar com os filhos por mais tempo, não melhoraríamos o mundo atual? Isto seria o máximo da modernidade de um pai. O mundo e principalmente os filhos estão precisando desesperadamente disso.

Pois quem pensava que nesse dia especial, de celebração do Dia dos Pais, só falaríamos sobre as benesses da honrosa condição de pai, deve ter se surpreendido com as provocações/reflexões aqui levantadas. Mas, tenha uma certeza, pai moderno não é somente aquele que divide com o filho a carona até a escola ou curte as redes sociais com eles e por isso se acha “antenado no futuro”, mas antes de tudo aquele que é capaz de compreender esse momento de transição da sociedade em que se tornou moda a “terceirização” da educação desde o primeiro dia de vida, delegando a outros as responsabilidades de pai e mãe. E nesse contexto, dividir de igual para igual com a mãe a gestão do lar e principalmente a tarefa de educa-los é o melhor caminho. Somente assim teremos uma sociedade menos violenta, justa e mais amorosa.

Hoje é um bom dia para se refletir sobre o nosso papel na família e na sociedade. Pai, o sucesso de seu filho é o maior sucesso que você pode alcançar e desfrutar para o resto da vida. Faça diferença! É na educação dos filhos que se revelam as virtudes dos pais.

Feliz Dia dos Pais!

Brasília, 10 de agosto2014

Paulo das Lavras.



segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Rubem Alves (2): o sobrado do Capitão Evaristo

A alma é movida a saudade. Não tem o menor interesse no futuro.
A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado
 à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam.
(Rubem Alves)



O filósofo, educador e poeta Rubem Alves era neto do Capitão Evaristo Alves, político e famoso comerciante de Lavras. Seu imponente sobrado, como mostra a foto, se destacava na praça central da cidade. O capitão Evaristo era casado com Dona Delmina, filha do Dr Jorge, que vinha a ser o industrial proprietário da União Fabril de Lavras, a fábrica de tecidos situada às margens do Rio Grande, no local ainda hoje conhecido por Fábrica Velha. Rubem Alves, seu bisneto conta que Dr Jorge plantou muitas árvores na praça em frente ao seu sobrado, como palmeiras, tipuanas, jatobás e ipês. Espírito empreendedor criou, juntamente com seu genro, o Capitão Evaristo, a Cia de Navegação do Rio Grande, importando barcaças dos EUA semelhantes aos vapores que navegavam no rio Mississipi. O casarão, conhecido por Sobrado do capitão Evaristo, foi incendiado em 13 de maio de 1962 por um piromaníaco, Sr Lucílio, que também colocou fogo em vários outros prédios antigos da cidade. Ali no sobrado do capitão Evaristo funcionavam, no térreo, uma grande loja da CAMIG, o Salão Cristal, um bar, um pequeno Café de propriedade do Sr Marani onde trabalhava meu amigo, menor, José Augusto, que sempre nos servia o cafezinho na década de 1960. Naquele tempo parece que não era proibido o trabalho de menores, pois ele pagava o Colégio Aparecida com o próprio salário. Havia também naquele sobrado um gabinete dentário do Dr. Antônio Cherem. Vinte e dois dias depois o mesmo maníaco ateou fogo ao Hotel Jardim, na mesma praça. Lembro-me ainda de um terceiro incêndio criminoso também na mesma praça. Lucílio Smith, o piromaníaco ainda não identificado, incendiou o prédio situado ao lado do cine Brasil. Era o dia 09 de junho, menos de um mês depois do incêndio do sobrado do capitão e nove dias depois do segundo incêndio. Era um sábado, dia de ir ao cinema. Estávamos assistindo à sessão das 18:30h quando se acenderam as luzes e o porteiro, Nego, pediu que todos saíssem rapidamente e que os ingressos seriam devolvidos. Ao sair nos surpreendemos com as enormes labaredas vindas do prédio ao lado onde funcionava um depósito da Mobiliaria Aliança, de nosso amigo Luiz Teixeira da Silva. Alguns populares se arriscavam e retiravam móveis e objetos de decoração que eram colocados bem ao meio da rua. Foi uma cena apavorante e triste que presenciamos. Identificado em outra tentativa de incêndio, Lucílio confessou que iria incendiar o antigo prédio da Prefeitura, hoje, Casa da Cultura, magnificamente restaurado e o antigo Teatro Municipal, verdadeira réplica do Scala de Milão. Com medo desses incêndios, as autoridades decidiram demolir o teatro. Uma pena.

Mas, voltando a Rubem Alves, que passou parte de sua infância naquele sobrado, ele  descreve como tudo ali era grande. As portas grandes na largura e na altura. Eram grossas e pareciam que eram para deixar passar gigantes. Os corredores largos demais. Longos demais. E o pé-direito das paredes era muito alto.  Tinha cinco portas de frente para a praça. As duas da direita eram do armazém. A do meio, de duas bandeiras, porta de gigantes era a porta de entrada para o sobrado. Ali o ar tinha o perfume dos perfumes da barbearia, a qualquer hora. Passada essa porta, ao caminhar para o corredor e se aproximar da escada, à esquerda, o cheiro do perfume era substituído pelo cheiro de mofo que vinha dos cômodos permanentemente fechados e úmidos. Vencidos os onze degraus do primeiro lance e os treze do segundo, chegava-se à sala de visitas que se situava do lado direito. Um mesmo batente sustentava duas portas para o acesso à sala. A primeira, externa, de madeira maciça era também uma porta para gigantes. A segunda, interna, mais delicada tinha caixilhos de alto a baixo com vidros coloridos importados, vermelhos, azuis, amarelos e verdes. O teto barroco, abaulado. Era decorado com frisos dourados. No ângulo do fundo o piano Pleyel e seus candelabros importados da França. Havia um conjunto de sofás de palhinha, produto artístico do artesanato local do século XIX, consoles e mesas de mármore com jarras de cristal. Um enorme e pesado espelho de cristal, pendurado na parede dos fundos sobre o sofá, completava a decoração daquela enorme sala onde o menino, sozinho, sentia-se menor ainda. Ele sabia que, nos anos da riqueza, aquela sala fora palco de muitas festas, as chamas das velas refletidas nos espelhos e nos cristais dos lustres. À esquerda da sala saía outro corredor que se dirigia para as entranhas da casa, caminho interditado às visitas de cerimônia. Ambiente formal, lugar de delicadezas, das cerimônias, do cuidado com as palavras, do café com sequilhos. Os visitantes deveriam ocupar os lugares determinados. Não havia improvisações, tudo estava em ordem, cada coisa no seu lugar.

Do lado poente, continua Rubem Alves, estava a sala de jantar com suas oito janelas. Estas eram emolduradas com trepadeiras onde os gambás passeavam à noite com seus olhos brilhantes, olhando curiosos e sem medo das pessoas reunidas na sala. As paredes com pinturas a óleo, de cor verde suave, eram adornadas, bem no alto, por uma franja de miniaturas, obra de um artista, com cenas marinhas e bucólicas. Num lugar do assoalho, próximo a uma coluna de madeira, havia uma argola de ferro pregada às tábuas largas, cuja função nunca ninguém explicou ao menino. Suas fantasias infantis faziam-no imaginar que ali se amarravam os escravos. Um relógio de carrilhão estava pendurado na parede ao lado de uma porta que conduzia ao quarto de badulaques. Era o quarto do mistério, do desejo do menino. Para ir de um quarto a outro se passava por dentro dos intermediários. Havia neles um aveludado e discreto perfume de urina, resultado de milhares de noites de urinóis cheios que eram esvaziados pelas manhãs em procissão, cada pessoa carregando discretamente o seu, na direção do banheiro, tarefa humilde que em outros tempos, fora realizada pelas escravas. O menino nunca entendera por que razão não se usava diretamente o banheiro em vez de urinóis guardados debaixo da cama. Mais tarde atribuiu esse costume aos hábitos do tempo em que a “casinha” ficava do lado de fora da casa grande e dava medo de ir lá fora durante a noite. E aqui fico eu a imaginar..., noite escura sem iluminação alguma, no sereno ou na chuva. Vai que algum bicho resolvesse atacar, ou se houvesse alguém na espreita...

Da sala de jantar saía outro corredor em direção à cozinha e banheiro. Dava acesso a três quartos, um dos quais era o de visitas, onde o menino, Rubem Alves e sua mãe ficavam. Um dos quartos era usado como copa, com mesa e cadeiras, um grande filtro d’água, máquina antiga se fazer sorvetes, abandonada e um enorme armário branco com jogo de porcelana inglesa, nunca usado. Na prateleira inferior ficavam as bananas-prata com seu saboroso cheiro que inundava o corredor de alegria. Uma delícia! Depois do corredor ficava a cozinha com seu fogão de ferro e finalmente o banheiro com privada artisticamente decorada, importada da Inglaterra e duas banheiras. Uma para os homens, normal e a outra para as mulheres, diferenciada. Parecia uma poltrona grande, muito grande, de encosto reclinado e assento afundado. As pernas de quem tomava banho ficavam pendentes para o lado de fora. O menino nunca entendera as razões para aquelas diferenças que tornavam a banheira das mulheres tão estranha. Talvez para que os homens nunca as usassem. O seguro morreu de velho e todo cuidado é pouco, concluiu o menino aos sessenta anos.

Depois do banheiro, ao final do corredor, havia a escada escura e estreita que levava à antiga senzala, à horta e ao jardim interno da casa. O menino Rubem se lembrou de que aquele pátio do sobrado do Capitão Evaristo Alves de Azevedo, um dia serviu para abrigar um elefante de circo. Estava estressado com o assédio do público e o único lugar reservado em que podia descansar era o pátio da antiga senzala do casarão de seu avô.

Assim foi, nos idos de 1935/45, o sobrado do Capitão Evaristo, avô do grande poeta e filósofo Rubem Alves que ali viveu parte de sua infância e nos relatou. Pouco mais de 15 anos depois um piromaníaco colocou abaixo aquele belo sobrado com um incêndio que apagou para sempre aquele belo cenário. Porém sua memória é indelével na alma dos lavrenses. Se os fotógrafos cuidaram de perpetuar a memória retratada daquele famoso sobrado, conforme mostram as fotos aqui anexadas, Rubem Alves nos deixou o seu legado perpetuado numa de suas inúmeras obras, de onde transcrevemos as memórias acima. Seu livro de memórias da infância, “O velho que acordou menino”, é fonte inesgotável sobre a vida no casarão. Se aqui nos restringimos às descrições físicas, vale a pena ler suas crônicas sobre o cotidiano daquele local e da cidade nos anos de 1935 a 1970. Porém, antes de encerrar, lembraremos apenas mais um episódio contado por Rubem Alves: o famoso “leão das nove”. Quem foi jovem nos anos de 1960/70 se lembrará desse fenômeno. Incrível..., bateram as nove horas da noite e como num passe de mágica a cidade ficava totalmente deserta. Todos corriam para suas casas. Os namorados e a garotada que lotavam o jardim sumiam, a praça central, bem defronte ao sobrado do capitão Evaristo, se esvaziava, não ficava ninguém. Rubem Alves assim descreve: 
“Quando o carrilhão do relógio da sala de jantar tocava a música das 8h 45 da noite era servido chá num bule de prata, coberto com um abafador. Eu começava a ficar ansioso. Estava chegando a hora do pânico, quando o carrilhão batia 9 horas. As 9 horas provocavam pânico em todos, que apressavam em ir para a cama como se uma grande catástrofe fosse acontecer caso se estivesse perambulando pelo sobrado às 9h 15. A cidade inteira tinha medo das 9. A praça estava cheia de moços e moças que faziam o “rela”. Mas, repentinamente, de um golpe só, a praça ficava vazia. Explicaram- me que esse pânico era um resíduo de tempos muito antigos, quando havia uma ronda policial que, às 9 da noite, saía para prender os vagabundos. Porque somente vagabundos poderiam estar perambulando pelas ruas àquelas altas horas da noite.” Em compensação acordava com os badalos das 5h: 30, saía caladinho para a praça e se deliciava com o frescor das manhãs, o cheiro das árvores, passarinhada cantando, sem nenhuma presença humana, felicidade indescritível, ele e a natureza. Rubem Alves foi assim, amava a natureza e as crianças e por isso se tornou igual a elas – o velho que acordou menino e reviveu a Lavras de 70/80 anos atrás. Não foi a toa que disse:

A alma é movida a saudade. Não tem o menor interesse no futuro.
A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado
 à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam

As almas dos velhos e das crianças brincam no mesmo tempo.
As crianças ainda sabem aquilo que os velhos esqueceram e têm de aprender de novo:     
que a vida é brinquedo que para nada serve, a não ser para a alegria!


Brasília, 04 de agosto de 2014

Paulo das Lavras 

           O sobrado do Capitão Evaristo Alves. Bico de pena estilizado nos anos 30 



                                                       foto da década de 1950. O sobrado foi criminosamente incendiado
                                                           por um piromaníaco, em 13 de maio de 1962



   O piano Pleyel, importado da França, que ficava na sala de visitas do sobrado.


                                             O menino se deleitava com os acordes de Chopin, Litz e Debussy aprendido
                                                       por sua mãe em aulas particulares no Rio de Janeiro.



Rubem Alves, o velho que acordou “menino” nas Lavras do Funil


Antiga Prefeitura e atual Casa da Cultura. Restaurada            
em 2013. Relíquia de mais de 100 anos salva da sanha 
                do maníaco incendiário dos anos 1960.                                        


                                               Mesma sorte não teve o belíssimo Teatro  Municipal

                                              que foi demolido antes que fosse incendiado.