quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Processo de Produção Intelectual


          Professor, como se dá o processo de criação de uma crônica, um artigo ou mesmo a invenção de um produto? Perguntou-me a aluna do curso de agronomia ao ler alguns de meus trabalhos. Difere das lógicas a que estamos acostumados? Continuou a aluna. Depois de pensar um pouco e surpreso com a qualidade da pergunta, respondi resumidamente como aquilo se passava comigo e prometi que lhe daria uma resposta mais completa, pois serviria de incentivo a todos os colegas. É uma questão tão importante, disse-lhe ainda, a ponto de se constituir matéria da área de gestão estratégica de empresas, ministrada no próprio curso de agronomia.

 

            O impulso de criar descobrir, inventar algo novo ou simplesmente produzir um texto literário se inicia com a “natureza inquieta”, com a “necessidade” de querer entender mais e mais sobre uma determinada questão, um problema ou objeto. Enfim, a busca por uma resposta para o problema ou produto desejado. Esse espírito inquieto, curioso por entender um problema é a primeira característica de quem produz algo novo, um invento, um artigo literário ou técnico-científico. Certa vez li uma frase que me marcou muito e tem servido de mote para minha conduta como educador: “Os mais inteligentes não são aqueles que sabem responder às questões, mas sim aqueles que fazem perguntas”. Perguntas sobre O quê? Quando? Por quê? Onde? Quem? Como? Quanto?, são ferramentas tão importantes no planejamento estratégico e desenvolvimento  de projetos que até receberam o nome de técnica dos 5W e 2H (What, When, Why, Where, Who, How, How much). Daí a importância dessas perguntas nos processos de planejamento, desenvolvimento e inovações. O inventor, inovador ou intelectual que produz um ensaio ou desenvolve uma nova ideia ou teoria, ou simplesmente escreve uma crônica, um conto ou uma poesia, leva a vida inteira com curiosidade.

           

Todas essas características podem ser resumidas em uma única palavra: sonhar... E para os sonhos não deve haver limites. Um exemplo? Aficionado por aviões, desde criança, sempre sonhei com as alturas vendo os voos das águias e aves de rapina que habitavam as montanhas alterosas. Tinha e ainda tenho verdadeira compulsão para admirar aviões e sonhar com eles. Pilotar pequenos aviões de treinamento e executar “perdas” com um monomotor de instrução “caindo” de ponta cabeça em parafuso era uma experiência fantástica, indescritível e repleta de adrenalina ao recuperar os controles da pequena aeronave. Praticante também do aeromodelismo, sonhava de olhos abertos com um protótipo de controle remoto que levaria um boneco paraquedista. Este, acionado pelo controle, seria ejetado em pleno voo e desceria suavemente com seu paraquedas aberto.  Criei isso no meu imaginário quando, depois de sobrevoar a fazenda de meu pai, lancei alguns bonecos presos a pequenos paraquedas, provocando a correria dos camaradas (empregados) em busca daquela curiosidade que caía suavemente do céu. Assim, prometi ao filho que compraria, em alguma viagem ao exterior, um desses aeromodelos com paraquedista. Ele  cansou de esperar, simplesmente porque o tal brinquedo ainda não existia. Hoje, decorridos mais de 30 anos, o tal modelo já está no mercado, ou seja, alguém sonhou e imaginou o mesmo projeto e o transformou em produto real. Então, orgulhosamente, disse: “viu com eu estava certo há 30 anos?”. Meu sonho era factível, mas, o filho ficou frustrado, pois ele propagandeara na escolinha que iria ganhar aquele “brinquedo fantástico” que nunca chegou, apesar das várias viagens ao exterior.

           

Assim, se a curiosidade é a primeira característica do pesquisador, inventor ou inovador, a segunda é o gosto pelo processo da descoberta. É preciso gostar da viagem e não apenas do destino, diz o ditado popular, ou seja, o processo de descobrir tem que ser empolgante para o protagonista, senão ele será interrompido. É comum as pessoas verem o invento e sequer imaginar quantas experiências foram feitas e perdidas até se chegar ao resultado final. Mas, o verdadeiro inventor se compraz até mesmo com os resultados de cada etapa do processo. Cada resposta gera um sem número de outras perguntas e a busca pelo conhecimento se torna infinita. É o amor pela arte de buscar o conhecimento. Entretanto, não bastam a curiosidade e o gosto. É preciso ser também muito persistente. Quer exemplos? Todos conhecem um produto muito utilizado em casa e nas oficinas, o WD 40, um fluido que remove toda a ferrugem de ferramentas, parafusos, fechaduras e tudo mais. WD é a sigla de “Water Displacement”, ou seja, deslocador, removedor de água. E o numeral 40, o que significa? Simplesmente identifica o número da fórmula bem sucedida. Trinta e nove outras foram testadas e não funcionaram bem. Somente a de número 40 funcionou como desejado. Perseverança...!

           

Outra característica muito importante é não colocar freios na imaginação. Feche os olhos e pense numa coisa boa... Já ouvimos isso muito vezes e tem uma razão fundamentada para tal conselho. É que o pensamento puro exige relaxamento e certo silêncio. O silencio total, o vazio da alma. A reflexão só acontece se estivermos concentrados, com a alma destravada, livre de qualquer preocupação. O pensamento tem que correr solto, como um sonhador... Embarcar nas asas da fantasia, no mundo dos sonhos é uma característica própria das pessoas, porém, difícil é manter-se nesse estado de alma destravada. Sempre somos cobrados, interrompidos e chamados à realidade... Acorda, fulano!!!  Sonhar de olhos abertos? Sim, também, pois os sonhos oníricos quase sempre não são lembrados depois que despertamos e o cérebro começa a entrar na consciência da rotina ou do planejamento do dia que se inicia. Poucos dos sonhos são lembrados. Quem ainda não se pegou resolvendo no sonho, de manhã ao acordar, um problema que o afligiu no dia anterior? Aprendi a manter um bloco e caneta na cabeceira da cama e anotar imediatamente, ao despertar, a solução encontrada durante o sonho. Pode parecer incrível, mas já consegui corrigir textos de minha própria produção, resolver equações matemáticas e problemas em 3D de engenharia, além de recordar nomes de ruas de cidades onde fizera alguma compra ou visto algo interessante e que por alguma razão não conseguira me lembrar durante o dia. Nem sempre a solução vinha completa no sonho, mas, depois, num processo reflexivo consciente, completava o raciocínio desenvolvido pelo inconsciente.

 

 Usar esse estado hipnagógico, que é aquele período entre o acordar e o total despertar, em que a consciência começa a tomar o lugar do subconsciente ativado pelo sono, é muito interessante. Nele podemos relembrar os sonhos, num período muito criativo em que a mente está destravada, voltada para o interior da pessoa e com acesso à inspiração do subconsciente. É considerado por muitos estudiosos como um estado de genialidade sem qualquer limitação. A literatura descreve que o inventor Thomas Alva Edson (1847-1931), o inventor da lâmpada incandescente, usava essa técnica para registrar novas ideias. Entrava em processo de completo relaxamento e meditação, ao mesmo tempo em que segurava uma bola de bilhar na mão, cochilava sentado e quando atingia aquele estado entre a vigília e o sono, quando temos alucinações visuais e auditivas, a bola caía sobre uma bacia fazendo barulho, despertando-o. Ato contínuo, enquanto estava naquele estado letárgico em que os pensamentos invadem o subconsciente, ele anotava e rabiscava as ideias que “sonhara”.

 
Como as ideias não têm hora marcada para aparecer é importante que se faça a anotação imediatamente. Paro o que estiver fazendo, inclusive de dirigir o carro, se for o caso e anoto as linhas gerais, os tópicos, enfim, tudo que puder caracterizar o “projeto”. Uma das situações em que os pensamentos criativos ocorrem mais frequentemente é nas viagens de trabalho. Os cochilos a bordo de grandes aviões se tornam fonte inesgotável para o afloramento dessas inspirações. São nos voos em cruzeiro dos modernos jatos, a 10 ou 11.000 metros de altura, em completo estado de meditação a contemplar o espaço, usufruindo do silêncio a bordo, que tenho tido as melhores inspirações para escrever algo sobre a beleza e o valor da vida. Ali, a sensação de flutuar, literalmente, nas nuvens provoca-me a leveza da alma e profundas reflexões inspirando a criatividade, seja ela plástica, literária ou técnico-científica. Esse estado de plena leveza da alma também é alcançado quando estou na varanda de minha chácara observando a natureza – os jardins, os passarinhos, o borbulhar da água que corre no rego e tudo ao redor. É um refúgio para a alma e ali me reencontro como “pessoa” e a criatividade tem campo fértil. Também na solidão dos hotéis, principalmente no exterior, onde o ambiente é propício à reflexão, encontramos ambiente favorável à criatividade. É impressionante como, nesse estado da alma, emerge o que sabemos sem saber que sabemos e o que procuramos sem saber que procuramos. Verdadeira terapia para a alma.

 
Tenho uma pasta repleta de papeizinhos, guardanapos de restaurantes, tickets, cartões de embarque com anotações, rabiscos de novas fachadas de casas, planos paisagísticos, títulos e sumários para novos artigos, tudo aguardando um destino, geralmente uma crônica. O notebook também se presta a tais anotações e nele há um arquivo eletrônico próprio para esses “projetos” em hibernação. Nem sempre o trabalho é concluído de uma só vez. Frequentemente são escritos e reformulados várias vezes, com intervalos de tempo incertos e de acordo com as novas ideias que vão surgindo e logo incorporadas. Há artigos inacabados há anos, mas não esquecidos e cada vez que os leio vou recompondo-os. Acho que escrever é uma arte que se vai apurando dia a dia e toma-se tanto gosto por ela que essa atividade acaba se tornando um hábito. Os escritores dizem que nunca se termina um artigo ou livro, pois, a cada vez que se faz uma releitura haverá novas inserções. Por isso dizem que é necessário dar um basta e “decretar” que o trabalho está pronto para ser publicado.

 
Mas, atenção, pois não basta ser curioso, sonhador ou gostar de pesquisar, ter ideias e anotá-las. Nem mesmo ter um método para desenvolver a questão é suficiente, pois o que literalmente difere os pesquisadores e intelectuais das pessoas comuns é que eles são persistentes e dão continuidade aos sonhos, buscando concretizá-los, acreditando que seu invento ou criação possa ser útil. São otimistas por natureza e neles não há lugar para pessimismos. Esse é o mote que me move, inclusive para escrever crônicas e em especial este artigo que responde a pergunta de uma aluna que queria saber como funciona o pensamento criativo diferenciado das lógicas a que estamos acostumados. Assim, ao escrever este artigo, penso que ele pode ser útil aos jovens que têm uma vida profissional inteira pela frente e de alguma forma, podem adquirir tais competências desenvolvendo suas habilidades e talentos. E você, jovem, sabe quais são seus talentos e habilidades? Veja na nota de rodapé os conceitos dessas características pessoais (*).

           

 
Brasília, 2009/2012

Paulo das Lavras

              
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(*) Conceitos:

Habilidade: capacidade técnica para realizar determinadas tarefas, desenvolvidas a partir da teoria e prática. Ex. tocar um     
                    instrumento, pilotar avião.

Talento: capacidade inata e que leva a um desempenho satisfatório tanto no aprendizado como na execução das habilidades. Ex  
              inventar, falar em público.

Competência: conjunto de habilidade e talento. Ex. piloto de avião de caça é mais competente  que outro que não tem tanta  
                       habilidade e talento para a realização dessa complexa tarefa.

 

 
Thomas Edison, grande inventor, inclusive da lâmpada elétrica
                                             incandescente que revolucionou o mundo.
                                       Valia-se das técnicas de relaxamento e meditação em
                                             estágios hipnagógicos para novos inventos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Um acidente aos cinco anos e caminhões que falam

                                                           


Não, o acidente não foi com esse belo caminhãozinho Chevrolet 48/49. Na verdade, quando essa foto foi publicada numa rede social, o menino das Lavras teve a memória despertada para dois deles. O da foto que pertenceu ao fazendeiro Toniquinho de Pádua e outro, de seu avô, Anízio Alves de Abreu, fazendeiro e vereador à Câmara Municipal. Seu caminhão, idêntico a esse modelo da foto, era muito comum na década de 1950. Importado dos Estados Unidos e fabricado pela montadora GM, era comercializado em Lavras pela Agência Chevrolet, de Ciro Arbex & Cia Ltda. Foi um sucesso entre os fazendeiros dos anos 1950/60. Serviam ao transporte de carga e passageiros. Sim, naquela época eram raríssimos os automóveis e a família, numerosa como era costume, se aboletava na carroceria, às vezes em meio às cargas diversas. Ração, cereais, galinhas, lenha, adubos, ferragens, tudo que se possa imaginar era acondicionado na parte traseira da carroceria. A parte mais à frente ficava reservada aos caroneiros que viajavam em pé, agarrados ao malhal, aquele travessão mais alto que aparece na foto.

Parece que a sina desses caminhõezinhos era mesmo servir de ponto de paquera das moças da família. Assim como esse da foto e já contado em outra crônica – “Um caminhão que fala e o fazedor de amigos”, o outro também era usado, nos finais de semana, para transportar time de futebol da roça.  São veículos que “falam”, pois fazem desfilar inúmeras histórias pelos escaninhos das lembranças. O avô, que jogou bola até os 70 anos de idade, era chamado de Coronel Anízio Gaspar desde os idos da criação dos partidos Rolinha e Gavião (PSD e UDN). Tinha um time de futebol na zona rural das Três Barras. Morava na cidade e como vereador era bem relacionado, sobretudo no meio esportivo. Era comum levar jogadores dos times da 1º divisão da cidade para reforço da equipe. Entre eles havia um garoto de 17 anos, assíduo frequentador da carroceria do caminhão do Sr Anízio Gaspar. Bom de bola, na linha de ataque, até chegou a integrar as equipes do Fabril e depois da Olímpica, os dois melhores times da cidade. Neste último foi campeão da Liga Esportiva de Lavras, em 1957, ao derrotar o Fabril Esporte Clube por 1x0, com gol de Danilo Pinto. Era convidado certo para as disputas dos campeonatos rurais. Esperto o garoto, na bola e na arte de conquistar as meninas. Logo ganhou a atenção de uma das netas do coronel, dono do time. Luiz Boneco, esse era o apelido do jogador de futebol, Luiz Antônio de Lima, filho do Sr. Júlio Oliveira, do Armazém do Julinho. O armazém de seu pai e a residência se localizavam na praça ao final da Rua Francisco Sales, hoje Praça do Trabalhador, portanto vizinho do dono do caminhão e do time da roça. Logo passou da condição de caroneiro e convidado para membro da família. Casou-se em 1959, com minha irmã, Carmem, constituiu uma grande família, cujos filhos e netos encontram-se espalhados por alguns estados desse imenso país. Mais tarde mudou-se para Goiânia, como gestor de linhas de transmissão das Centrais Elétricas de Furnas. Ali, o menino das Lavras sempre visitava a família do ex-jogador e caroneiro do caminhãozinho que “conta” essas histórias. Um bálsamo para quem vivia no exílio dourado de Brasília esses encontros de lavrenses e familiares. Voltou para a cidade natal e, ainda neste ano, depois de 54 anos de matrimônio, ele partiu para sempre, deixando um vazio de saudade. Nesse dia o Sr Anízio Gaspar, um de seus admiradores, não estava para as despedidas, pois já o aguardava na morada celestial. Mas a família sensibilizou-se com a presença do Presidente da Associação Olímpica de Lavras, Dr Henrique Pinto, que carinhosa e respeitosamente depositou a bandeira do glorioso time sobre o ataúde daquele que um dia defendera a equipe nas acirradas disputas do campeonato da cidade e ostentara a faixa de campeão a seu lado e também do irmão Danilo Pinto. Uma homenagem simples, mas que calou fundo nos doloridos corações da família. As alegrias e o amor pelo time da Olímpica não se restringiram ao campo esportivo, pois na hora da dor lá estava ela retribuindo o mesmo amor que sempre recebeu. Coisas de Lavras e sua gente unida como uma família.

Outro passageiro que marcou história foi um fazendeiro importante, o vizinho Sr Quincas Guimarães. Residia logo abaixo da casa do Sr Anízio e a primeira acima do Sr João Arbex, pai de Nilza, Joãozinho, Marta e Ciro, o agente Chevrolet da cidade. Todos velhos amigos. A viagem se destinava a um evento familiar na Fazenda Ribeirãozinho, propriedade do próprio Sr Quincas. Muito amigos, o dono do caminhão se ofereceu para levar a família Guimarães junto à nossa. Lotação completa. Lógico, todos acomodados na carroceria, pois automóveis eram raros naqueles idos de 1952/53. Havia muitas mulheres, Dona Dica, nossa avó, Dona Margarida, esposa do Sr. Quincas e muitas outras senhoras. As duas primeiras, mais velhas, tinham a primazia de viajar na boleia junto ao motorista. E o Sr Quincas? Como fazer para que ele subisse à carroceria com seu peso avantajado? Simples, baixou-se a tampa lateral da carroceria, colocou-se uma cadeira na calçada (passeio, dizia-se em Lavras) e com a ajuda de alguns o passageiro conseguiu alcançar a carroceria. O menino, com apenas uns sete anos de idade, olhava tudo com curiosidade e achou graça quando chegou o bonde e pôs a tocar a sineta para que desobstruíssem os trilhos. Não teve escolha. Interrompeu-se a operação de embarque, fechou-se a tampa lateral da carroceria para não resvalar na roda traseira, retirou-se a pesada cadeira de madeira e manobrou-se o caminhão. Aguardou-se o elétrico ir até a Rua Melo Viana e retornar em poucos minutos, pois descendo para a Estação levaria pelo menos uma hora para ali passar novamente. Na volta, já descendo a rua em direção à esquina com Chagas Dória, o motorneiro Cirilo acenou para o Sr Quincas e Sr Anízio que estavam na calçada. O cobrador, Gerson, de cara fechada não tirava os olhos da meninada para ver se eles iriam pegar carona no estribo, sem pagar, como gostavam de fazer. Caso o fizessem estava pronto para afugenta-los. Nada disso aconteceu, pois outra festa melhor os aguardava na fazenda do Sr Quincas.

A viagem até a fazenda Ribeirãozinho levou quase uma hora e a criançada adorou. Pela antiga estrada de terra, sinuosa e íngreme, que ligava Lavras a Nepomuceno, lá fomos nós levantando poeira, passando pelo posto fiscal do Passa Vinte. É, Lavras já teve sua vida medieval, pois em frente ao antigo Asilo havia uma barreira fiscal, com cancela e guardas, para autuar fazendeiros e viajantes sem a guia fiscal. Fazem-nos lembrar das cidades medievais europeias, principalmente Paris com seus inúmeros “portões” de defesa e coleta de impostos. Ainda hoje conserva os nomes como a Porte de Clinangcourt, onde há uma estação do metrô e o famoso mercado das pulgas, uma espécie de comercio semelhante ao da Rua 25 de Março em São Paulo. Prosseguindo a viagem ganhava-se a Rua do Capim, seguindo-se o Gato Preto, Queixada e Dessimoni, onde se atravessava a ponte de madeira sobre o ribeirão Água Limpa. Naquele tempo a água era limpa mesmo, pois até o Carnot de Pádua, fazendeiro e também jogador da Olímpica bebeu de sua água e não teve doença alguma. É verdade que foi forçado a isto quando sua caminhonete derrapou nas tábuas molhadas pela chuva e  tchimbum... caiu no ribeirão. Meu pai e camaradas da fazenda Ipê, de Francisco Dessimoni, o socorreram. Felizmente nada sofreu além de provar da água. Mas, continuemos a viagem. Passada a ponte, o caminhãozinho do Sr Anízio subiu o morro do Cruzeiro daquela fazenda e lá no alto da colina, a três quilômetros das Três Barras, rumou à esquerda por uma estrada secundária. Logo adiante, próximo ao ribeirão Maranhão, estava a fazenda do Sr Quincas.

 Ele adorava as crianças e durante todo o tempo foi nos contando histórias. Uma, especialmente, ficou gravada na memória dos meninos, pois além de bem rimada e engraçada, tinha uma palavra que as mães nos proibiam de falar. E, pela lógica, se um adulto falou e declamou... a criança também poderia fazer o mesmo. Com seu vozeirão de barítono recitou para a meninada que foi ao delírio:
Atirei o limão doce na janela do palácio
Deu no ouro, deu na prata
Deu na bunda da mulata...

 Ninguém conseguiu falar mais nada. Foram gargalhadas ecoando até o final da viagem. Nem mesmo as sisudas tias puderam conter o riso, pois não se esperava que aquilo pudesse partir de tão honorável senhor. Os meninos faziam questão de encara-las, como a dizer, então a senhora acha graça também, não é? Era a senha que precisávamos. A partir dali quando queríamos provocar as tias autoritárias recitávamos o poema do limão doce e ainda provocávamos: foi o Sr Quincas que nos ensinou. Acabava com qualquer sermão. Sr Quincas Guimarães deve ter feito muita festa quando chegou aos céus. Temperamento alegre e entretido com as histórias que contava naquela viagem cercado de crianças, não se deu conta de que esteve sentado no assoalho da carroceria com as pernas cruzadas sob os joelhos. Essa típica posição de meditação lhe provocou cãibras, mas foram logo dissipadas ao chegar à fazenda. Um grande amigo da família e ótimo contador de causos que sabia cativar as crianças.

 Esses caminhõezinhos de Lavras fizeram história. Falamos de dois deles. Há ainda um terceiro, fabricado em 1951, mais moderno, com para-choque cromado e que pertenceu a Pedro Correa Rezende. Mais valente, pois fazia longas viagens anuais de Lavras a Londrina, para onde se mudou em 1955. Eram mais de 1.000 km com toda a família na carroceria, onze filhos. Mas essa é outra história. Sobre aquele, focalizado nas histórias de hoje, o menino andou por muito tempo em sua carroceria e enfrentou situações mais diversas possíveis. Ajudou a transportar bezerros para o leilão da festa de São Sebastião ao lado da Igreja Mariz, passou por atoleiros, colocando e retirando correntes nas rodas traseiras e muitas outras situações. Mas e o acidente anunciado no título desta crônica? Bem, a foto despertou lembranças não só de bons eventos, mas também de um lamentável acidente acontecido com o menino. O retorno de sua primeira grande viagem foi no caminhãozinho de seu avô. Levou umas três horas para chegar à Lavras. Saiu da cidade de Varginha, naquele mês seco, de maio de 1950, tomou a estrada de terra para a vizinha Carmo da Cachoeira. Desta pegou o ramal em direção à serra da Bocaina, entroncando-se à estrada de Lavras para Três Corações, antiga rota para o sul de Minas em direção à São Paulo e Rio de Janeiro. O traçado dessa estrada intermunicipal era muito sinuoso, por entre serras e córregos, em leito mal encascalhado. Passou pelo Faria, Serrinha e chegou às proximidades da Estação Costa Pinto já em Lavras. Trechos muito acidentados, especialmente na garganta da Serra da Bocaina, mas, felizmente o valente caminhãozinho deixou só poeira para traz. Na boleia o avô dirigindo o próprio caminhão, o pai, a mãe e o menino com um enorme tampão sobre olho direito. Parecia não se incomodar com aquilo, nem mesmo com as lágrimas disfarçadas da mãe, que sabia de toda extensão e consequências do acidente que sofrera uma semana antes. Ali, em pé na ampla cabine, apoiado no painel, entre o pai e a mãe, se maravilhava com as paisagens nunca vistas, especialmente a travessia do Rio do Cervo em precária ponte de madeira. Belas fazendas e gado deitado na pista não faltavam. Admirava ainda as “enormes” serras na região do Faria e da Bocaina. Finalmente, depois da Serrinha e do Charquinho, cruzou a linha férrea da RMV e a poucos metros adiante avistou sua casa, única e destacada na grande chácara que ocupava todo o terreno onde hoje se situa o bairro Cruzeiro do Sul. Estava, finalmente, em casa onde tudo começou.

Não se pode dizer que não houve nenhum incidente naquela viagem. O menino quase provocou um incêndio no caminhão. Curioso e entretido com o interruptor do pisca alerta das setas laterais, que ficava em cima do painel, bem à sua frente. Ligava e desligava o dispositivo várias vezes seguidas só pelo prazer de girar a chave borboleta e ver a luz vermelha piscar na parte superior do interruptor. Isto provocou superaquecimento da fiação que começou a enfumaçar sob o capô. Uma parada rápida e logo se corrigiu a pane com o isolamento e consequente interrupção da corrente elétrica naquele circuito. Ninguém percebeu “a origem/causa” do malfeito. Melhor para o menino que, calado e comportadamente permaneceu pelo resto da viagem já bem próximo à chegada.

Passada a alegria do reencontro com os familiares, abateu-se um sentimento de tristeza com a notícia de que o menino havia perdido a visão de um dos olhos naquele acidente que motivara a imediata viagem à vizinha cidade. Mas, afinal que acidente foi esse? Com o caminhão do avô? Não! A noitinha de outono acabara de chegar. As crianças, especialmente as irmãs mais velhas, se divertiam com brincadeiras de leitura de poesias de Olavo Bilac, Guilherme de Almeida, Coelho Neto e demais clássicos repassados pelo Colégio de Lourdes. O menino, de cinco anos, recortava figuras da revista O Cruzeiro, presença constante nas casas de família dos anos 50. Deixou os recortes das figuras, firmou as duas pontas da tesoura, aberta, sobre a enorme mesa de madeira, colocou-a na vertical, pegou os cabos, um cada mão e disse para si: agora vou cortar a tábua da mesa. Ao colocar força, pressionando-a de cima para baixo, para que ambas as pontas penetrassem na madeira e a cortasse..., aconteceu o pior. A tesoura resvalou e uma das pontas atingiu o olho direito, pois o menino havia se debruçado ficando seus olhos no mesmo nível do deslocamento acidental. O choro súbito e estridente chamou logo a atenção da mãe que o levou à casa do avô, ao lado, onde se encontrava, casualmente, o experiente farmacêutico José Pedro de Castro, amigo da família e pai do ex-prefeito Silvio de Castro. Este pediu que elevassem o menino à altura do lustre da sala, cuja iluminação era muito fraca, pois a energia elétrica era bastante precária e contava apenas com a pequena usina hidrelétrica do Cervo, insuficiente para a demanda (a nova iluminação de Lavras só foi inaugurada por JK ,em novembro de 1955, com a energia da recém-construída hidrelétrica de Itutinga). Diante da gravidade da situação recomendou algum medicamento e imediato encaminhamento à cidade de Varginha onde havia um renomado especialista, o Dr Oswaldo Valladão. Aliviada a dor com algum medicamento, partimos naquela mesma noite, no dito caminhãozinho. Alojados em hotel da Av. Rio Branco, na praça central da cidade, caminhamos até o consultório médico que ficava logo atrás da praça, na rua Pres. Antônio Carlos.

O médico, Dr Valladão, nos chamou não sem antes de atender a um homem que chegara chorando com terrível dor de cabeça. O menino achara esquisito, pois nunca vira um homem chorar desesperadamente e perguntou à mãe por aquilo. Finalmente o médico examinou o menino e mandou proceder alguns exames oftalmológicos em diversos aparelhos óticos de luzes coloridas, do roxo ao amarelo citrino. Depois de uns três a cinco dias viria o diagnóstico. Enquanto isso o menino se deleitava com a nova cidade. Uma bela praça ajardinada a la anglais, como dizem os franceses, com marcações geométricas e árvores, geralmente uma espécie de fícus, recortadas e modeladas em forma de esferas, cubos, cilindros e outras formas. Ver o jardineiro podar aquelas árvores e o bonito gramado despertava grande interesse por ser uma novidade. Apreciar os garotos em seus patinetes descendo a calçada da praça em disparada era o que mais gostava, sobretudo quando eles trombavam uns nos outros e caiam. Gostou tanto que até arrancou uma promessa do pai, que ganharia igual quando chegasse a Lavras e melhorasse com os curativos da vista. 

Anos mais tarde, por volta de 1970, o menino-engenheiro voltou à aprazível cidade de Varginha, passeou pela praça, modificada é verdade, tomou um suco de laranja no local onde funcionara o velho hotel em que se hospedara. Contemplou a praça, fechou os olhos (aliás, bastava fechar um só, pois a visão do olho direito estava perdida desde quando lá esteve pela primeira vez) e passeou pelos escaninhos da mente revivendo aqueles momentos de criança ali vividos. A vida é bela. Pensou. O bonito e diferente jardim em estilo inglês nem existia mais. Mas, ainda assim, estava ali bem presente na sua mente, gravado de forma indelével, inocente e feliz. Para o menino nada de grave teria acontecido consigo. Só veio a compreender a gravidade do acidente, três anos depois, já na escola quando foi obrigado a usar óculos. Sofreu apenas um leve bullying por parte de um ou dois coleguinhas que o chamavam de “quatro olhos”. Depois, bem mais tarde, não pôde tirar brevê de piloto esportivo de pequenas aeronaves por ter visão monocular. E só! O menino de cinco anos estava certo. Esteve ali apenas para se deleitar com a novidade, com a beleza daquele jardim cheio de crianças com seus patinetes e que ao voltar para a casa ganharia igual. Além disso, a viagem no caminhão do avô foi o máximo. Só para ele. Nem as lágrimas da mãe fizeram-no desconfiar que havia perdido algo importante. Mesmo assim a vida é bela, concluiu, 20 anos depois.


Brasília, 26 de novembro de 2013


Paulo das Lavras

Anízio Gaspar, o avô que jogou futebol até os 70 anos

O jovem Luiz Boneco, no Fabril em 1954

Luiz, o 3º da esquerda, agachado. Campeão da Liga 
    Esportiva de Lavras, pela Olímpica, em 1957


 
Antonio Carnot de Pádua, no centro, agachado, também era jogador da mesma Olímpica. Na década de 1950 sua caminhonete derrapou na ponte de madeira e mergulhou no ribeirão Agua Limpa. O menino assistiu o acidente e o pai se apressou em entrar na água para socorrer o amigo Carnot, que nada sofreu além do susto

 




                                                                     Sr Quincas Guimarães, amigo da família
                                                                                   e passageiro ilustre


                                                                                           


E o bonde parou... e enquanto esperava a saída do caminhão alguém fotografou, de dentro dele

a Rua Francisco  Sales mostrando a janela da casa do Sr Quincas e logo abaixo a casa de João  
Arbex. Na esquina, o sobrado dos Estabelecimentos Záckia e residência de Jofre Avayou no  
         segundo andar.

       O Menino das Lavras pouco antes do acidente        

                       Os pais do menino das Lavras , com o irmão mais novo colo                       






















  

                                        


















domingo, 24 de novembro de 2013

Um caminhão que fala e o fazedor de amigos




 

A foto desse histórico e bonito caminhãozinho foi publicada recentemente nas redes sociais. O menino das Lavras logo o identificou e saudosas lembranças desfilaram em sua memória. Além desse, que lhe “contou” doces recordações, havia outro igual em que costumava andar bastante. Foi um modelo muito comum na década de 1950, com capacidade para quatro a cinco toneladas de carga. Importado da montadora GM e comercializado em Lavras pela Agência Chevrolet, de Ciro Arbex & Cia Ltda. Pertenceu a um importante fazendeiro, o Sr Toniquinho de Pádua que, para nossa tristeza, nos deixou ainda cedo. Esteve guardado por trinta e três anos na fazenda, depois de rodar por mais de 20 anos unicamente nas mãos daquele renomado fazendeiro. Tinha um ciúme danado que se revertia em cuidados especiais como só deixar as revisões a cargo da agencia autorizada. E mais, ali havia, ainda, o mecânico João Foguete, mestre na arte dos motores Chevrolet e somente a ele confiava a revisão de seu mimado caminhão. As peças tinham que ser as originais, importadas. Nunca o emprestava, a ninguém. Precisou? Sem problemas, ele mesmo ia pessoalmente atender ao amigo. Verdadeira joia preciosa, cuidada com esmero. Só foi vendido, ainda assim para um colecionador, depois que a matriarca da família também foi ao encontro do Sr. Toniquinho. Ela, que amava a fazenda e a memória do esposo que partira bem antes, tinha especial carinho por aquele veiculo que fora parte importante na vida da família. Com ele foi construída boa parte da fazenda e as crianças cresceram andando nele, quase que diariamente da cidade para a fazenda e vice versa ou em passeios às fazendas vizinhas e tudo que demandasse qualquer deslocamento. Aliás, não foi só o belo caminhãozinho que recebeu tratamento especial, carinhoso. Tudo foi conservado por ela na ausência daquele se dedicou inteiramente à família e à construção daquele patrimônio para que eles, esposa, filhos e suas gerações  desfrutassem. Tudo restaurado, conservado de acordo com o original, de doces recordações. A fazenda, sua bela sede com pinturas de paisagens bucólicas nas paredes da varanda, o silo aéreo, grande novidade à época, os currais, galpões e arredores. Este autor a conheceu muito bem na companhia de um dos filhos do casal, o inesquecível colega de turma do curso de agronomia, Thadeu de Pádua. Por ironia do destino, logo no início deste ano, quando o já tínhamos programado uma visita nostálgica àquela bela fazenda, que se vislumbra da ponte sobre o Rio Grande, ele, o amigo, decidiu partir subitamente. Deixou-nos, a todos desconsolados, doloridos com sua brusca viagem, não naquele caminhãozinho, mas em carruagens celestiais, escoltadas por anjos, ao encontro de seus pais na Glória do Senhor.

A frustação do menino, por não ter podido realizar a visita em companhia do amigo, tem sido minorada com a publicação de fotos da bela fazenda, dos familiares e agora desse caminhãozinho. Este despertou-lhe a escrita destas memórias, que são uma forma de terapia, dizem os especialistas. E haja história para contar. Esse caminhão me falou das estradas rurais, íngremes e barrentas, levando e trazendo cargas mistas. Cargas propriamente ditas e necessárias à fazenda ou produtos desta para a cidade e...., pasmem, em meio à carga, uma meia dúzia de passageiros, a filharada e contumazes caroneiros aboletados na carroceria do faceiro Chevrolet. Linhas de ônibus? Nem pensar, pois as poucas existentes passavam longe da fazenda Naqueles duros tempos dos anos 1950/60 havia pouquíssimos carros motorizados na cidade. Automóveis, sedãs como eram chamados, eram mais raros ainda. Portanto, os caminhões ¾, como esse da foto e as caminhonetes imperavam. Eram muito práticos e ideais para os serviços da fazenda, atividade principal do município. Passageiros na carroceria do caminhão? Sim era muito comum, pois o transporte público em jardineiras (antigos ônibus sobre chassi de caminhão, próprias para as estradas de terra) ainda era muito limitado. Havia certo risco para os passageiros na carroceria, mas nem tanto, pois a velocidade média era apenas 20 a 25 km/h nas estradas de terra, embora seus velocímetros marcassem até 120 m.p.h., aproximadamente 190 km/h.

Aquele pesado veículo se prestava também ao papel de autoescola familiar.  Os jovens, rapazes e moças, treinavam a direção com o pai que, prazerosamente, os ensinava a dirigir, pois autoescolas ainda nem existiam. Não era fácil o aprendizado naquele caminhão de volante enorme, duríssimo, pesado, cambio seco, ou seja, para se trocar a marcha era necessário debrear, puxar a alavanca do câmbio somente até o ponto morto (neutro), soltar a embreagem, dar uma aceleradinha e em seguida debrear novamente. Só então se podia levar a alavanca até à posição da marcha desejada. Coitado do caminhão, passou pelas mãos aprendizes de todos os filhos. Uma das filhas, depois de alguns treinos, parecia ir bem nas lições práticas de direção até que um dia, ao tentar reduzir a marcha barbeirou feio naquele “cambio seco”. Apavorou-se com o barulhão das engrenagens rangendo, arranhando como uma navalha mal afiada. O nervosismo e desespero da aprendiz aumentaram diante do risco de iminente acidente. Não bastasse isso e já quase em pânico, com o coração saindo pela boca, o pai gargalhava como era seu costume em qualquer que fosse a situação, mesmo nas mais adversas. Quanto mais força a mocinha apavorada imprimia mais o barulho aumentava. Adrenalina nas alturas, pavor estampado na face, decidiu colocar toda a sua força naquele traiçoeiro pedaço de ferro com uma bola preta de ebonite na ponta (ainda não existia plástico nos automóveis) . O resultado foi desastroso. Subitamente a alavanca de marchas, não resistindo, escapou inteirinha na sua mão direita. Com os olhos arregalados, largou o volante, em pânico, mão esquerda na cabeça e descabelando agitava freneticamente a alavanca, mostrando-a ao o pai, como a perguntar... o que eu faço, agora? O doce e tranquilo pai não parava de rir daquela inusitada situação e a cara de pavor da filha. Na verdade estava quase desmaiando de tanta gargalhar. Felizmente a moça obedeceu ao comando do pai que gritou, ainda meio sem fôlego: pisa na embreagem e no freio, depressa! Não fiquei sabendo se a moça conseguiu, depois, a carteira de motorista, ou se restou algum trauma...

Esse caminhãozinho tem histórias. E ao vê-lo, na foto, contou-me outras. Sua carroceria vivia repleta de jovens. Carregou sonhos e mais sonhos de uma juventude sadia, ordeira que se reunia para diversão em atividades nas fazendas e na cidade. Havia uma turma de rapazes muito espertos. De olho nas belas meninas sempre arranjavam um jeito de pegar carona naquele caminhão. Sabiam a hora certinha que o pai das garotas terminava os afazeres da ordenha do rebanho e voltava para a cidade. Era hora de bater ponto na sede da fazenda para pegar carona e, lógico ao lado das moças que sempre acompanhavam os pais nos fins de semana. Chegavam de mansinho, cumprimentavam os pais, ganhavam lanche oferecido por Dona Olga que, com seu carinho maternal se compadecia daqueles meninos que passaram o dia pescando nas lagoas da fazenda. Coisas de mãe que sempre acha que o filho precisa se alimentar mais e agasalhar-se. Na verdade os guapos rapazes, e eu os conhecia, certamente estavam ali por outros motivos que julgavam secretos, mas que não passavam despercebidos até porque as moças ficavam radiantes com a “inesperada” visita. E eram em turma de três a meia dúzia a cada vez.

Havia também outros grupos de jovens, os jogadores de futebol, do time chamado “Fábrica Velha”. Esse nome era alusivo à Fabrica de Tecidos União que ali existiu até o ano de 1925, na localidade de Dr Jorge, às margens do Rio Grande. O caminhãozinho era o meio de transporte de boa parte dos jogadores. Sr Toniquinho tinha prazer em ajuntar o time arregimentando os jogadores na própria fazenda e na vizinhança, do Sr Américo Alexandre e Sr Zé Maria, tios das moças. Os campeonatos rurais aconteciam nas Três Barras, Criminoso, Boa Vista e até mesmo nas cidades de Perdões e Carmo da Cachoeira, onde este menino até chegou a acompanhar uma comitiva em outro caminhão igual, o de seu avô. Mas, aquela turma da suposta pescaria também se infiltrava no meio dos jogadores para assistir aos jogos. Alguns até eram bons de bola e conseguiam ser escalados no time. Esses gostavam de se exibir, pois ali na pequena plateia estavam aquelas lindas meninas, donas do caminhão, ou melhor filhas do dono, o que dá na mesma. E nas viagens elas faziam questão de ir na carroceria. Na boleia, só os pais. Dona Olga, a zelosa mãe, não tirava o olho do espelho retrovisor para ver o que se passava na carroceria. Ela própria, que antes chegara a queixar-se de ligeiro torcicolo, mandara instalar o retrovisor interno, na cabina do caminhão, pois mesmo os carros novos não tinham esse acessório. Proporcionou maior conforto, mas logo ele afrouxou, de tanto que era ajustado para pegar todos os ângulos da moçada lá atrás na carroceria. Coisas de mãe, que deixava transparecer grande preocupação com as suas prendas, ali em meio a tantos jovens, guapos rapazes. Chegava exausta ao destino, quase sempre depois de uma hora inteira de viagem em estradas sacolejantes e sempre movimentando ora o corpo, ora o retrovisor.

Diante da notória preocupação da zelosa mãe, o sempre alegre e amoroso pai das garotas dava gargalhadas ao volante. Caçoava a aflição da mãe dizendo-lhe: que nada, não se preocupe minha querida, eles estão apenas se divertindo e lá estão, também, os dois irmãos delas. Mas, certamente, ele também disputava umas olhadinhas pelo bendito retrovisor que a companheira mandara instalar. Talvez a frouxidão precoce daquele acessório tenha sido mesmo antecipada em razão dessa disputa de vira para lá, vira para cá a toda instante. É verdade que nessa luta a mãe sempre vencia. Também como não se lembrar dos lindos versos da poetisa que canta e decanta a essência do amor e os mistérios das mães?
“ É certo que as mães têm um mistério
 Que as fazem nessa Terra tão presentes!
 Mesmo depois de transcender o etéreo
 Para habitar o Céu e as nossas mentes...  

 São elas que ensinam, sempre a sério,
 A cumprir os deveres prontamente.
 São elas que nos legam o critério
 Da escolha. E o fazem brandamente....

  É a Mãe que à noite ao nosso lado
 Mitiga a nossa dor, o medo ancora,
 Faz-nos dormir e ao leito nos conduz...

  Mas em outro momento tão chorado
 Somos nós que a ajudamos em sua hora
 De adormecer nos braços de Jesus...
 
 Autora: ÂNGELA FARIA DE PAULA LIMA

        Alheia a toda essa atenção dos pais a moçada se divertia na carroceria do sacolejante Chevrolet 48/49. Não sei dizer que desfecho tiveram tantas caronas naquele caminhãozinho, mas duas coisas posso garantir. Pescaria era desculpa esfarrapada. O mais importante, com certeza, era a companhia das belas meninas. O caminhão de meu avô também serviu para a mesma situação, com rapazes e moças em passeios pelas fazendas e campos de futebol. Na verdade os rapazes desta história, meus contemporâneos, só iam msmo esperar o final da tarde. Quando muito, nadavam nas lagoas da fazenda e alguns mais dispostos e corajosos chegavam a atravessar a nado o imenso Rio Grande naquela curva logo abaixo da ponte da rodovia. Corajosos, aqueles meninos na travessia do rio, como também na frequente arte de pegar caronas sempre que farejavam as companhias desejadas.

Esse caminhãozinho me contou mais.... Alguns anos mais tarde Sr Toniquinho pegava a netinha primogênita e a levava até a venda das Três Barras, a uns quatro quilômetros pela Fernão Dias. Esse armazém, que era conhecido por “Venda do Sr Júlio”, foi o embrião dos Supermercados Rex. Sr Júlio Sales iniciou seu comércio ali na zona rural das Três Barras, nas terras de seu sogro, João Pereira da Silva, o meu tio Nhô. Este menino frequentava a “venda” quando passava as férias na fazenda do pai, logo ao lado. Funcionou ali até os anos 60. Antes, em 1954, Sr Júlio abriu o Armazém Rex no antigo Mercado Municipal e depois na Franciso Sales. Finalmente, em 1969/70 inaugurou o Super Rex na Travessa Guadalupe, quando já havia fechado a “venda” das Três Barras. Mas, voltando à viagem à “venda”, tive acesso pelas redes sociais a uma postagem emocionada daquela netinha, hoje adulta, relatando a alegria que tinha ao ser levada pelo avô, prometendo-lhe comprar sanduiche de pão com salame, guaraná da marca 507, fabricado em Varginha e alguns docinhos de abóbora, banana ou batata doce em tabletes. Ela preferia as balinhas de abacaxi-puxa, aquelas que arrancavam dentes. Era a festa para a menininha que se encantava com o avô e ainda hoje sente sua falta e se emociona diante das fotos dele e desse caminhão. Coisas do Sr Toniquinho, pai e avô mais amoroso, alegre, sem igual.

Sr Toniquinho e Dona Olga usaram esse caminhão para espalhar o amor. O amor aos filhos, o amor aos vizinhos, aos conhecidos, aos camaradas (empregados) da fazenda e a todos que precisavam de uma carona ao longo da empoeirada ou barrenta estrada. Nem era preciso acenar. Certa vez, voltando da fazenda para a cidade, ele parou no ponto da fazenda Retiro, nas Três Barras e ofereceu para nos levar, a mim e meu pai que o chamava de Tuniquinho de Pauda (assim mesmo, com inversão de letras, mas sempre pronunciado com muito respeito). A atenção, o carinho, o sorriso permanente daquele homem, pai, avô e amigo, eram os mesmos para quem quer que fosse. Indistintamente. Ele tinha prazer em todos os seus gestos. Dava-se ao luxo de passar em frente a um banco comercial, onde trabalhava uma de suas filhas, só para acenar, dar um ligeiro toque na busina e esbanjar um largo sorriso para ela como a dizer: oi, estou aqui, passei só para te ver, filha! Assim era o dono desse caminhão comprado em 1949, há exatos 64 anos e ainda hoje conservado. Jóias, o primeiro dono e o caminhão que me contou tudo ao revê-lo na foto. Inspirou-me  a escrever duas crônicas. A segunda se refere à minha primeira viagem em outro caminhão, igualzinho a esse. Mas essa é outra história. Hoje a homenagem é para esse exemplar pai de família que só sabia semear o amor e deixou um abençoado legado. Um legado que inclui até um caminhão que fala. E que só fala de amor, tal qual aqui escrevi. Que seus filhos e todos familiares colham os frutos desse amor.

Brasília, 24 de novembro de 2013

Paulo das Lavras
A família Pádua  
                           A família e o caminhão sobre a ponte ao lado da fazenda
                                                              
                                   Sr Toniquinho de Pádua, sempre sorridente
                                                                      
Sede da Fazenda Bela Vista, no alto da colina.
Grandes lagoas na entrada da ponte da BR381
 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Terapia pela escrita... Vamos nessa?


Li um artigo interessante sobre a terapia psicológica por meio da escrita, sejam poesias, contos, crônicas ou outras.  Foi lembrado o exemplo de Carlos Drummond de Andrade que, em entrevista, citou o inicio de sua carreira na literatura com poesias produzidas por impulso. Nelas ele constatou, depois de certo tempo, que ali estavam inseridos aspectos sombrios que povoavam sua mente. Seus escritos eram, segundo o próprio Drummond, uma forma de clarear esses pensamentos conflitantes, exercendo um papel muito salutar, tonificante para a sua alma. A literatura tinha, portanto, efeito terapêutico para ele, aliviando a carga de problemas que carregava. Assim, expressava-se na poesia, ainda que na linguagem simbólica, aquilo que era inconsciente e que de certa forma o incomodava, sejam as injustiças, as belezas ou simples passagens de vida em família e nunca antes devidamente explicadas ou exploradas convenientemente. E ele se sentia aliviado ou até mesmo gratificado por ali colocar aqueles “problemas”, expelindo-os de forma construtiva. A literatura era seu “divã”, concluiu Drummond.

É interessante a constatação de que, até mesmo nos contos de ficção, sempre há um pouco de autobiografia. Aqueles que gostam de escrever, ainda que por puro lazer e muitos de nós somos assim, sabem muito bem disso (crônicas que escrevo só as libero para os amigos mais chegados, pois as leem com o os olhos do coração e adicionam críticas sinceras, pois o que me move é o desejo de crescer e co,mpartilhar as coisas boas da vida). Qualquer produção literária, não importa o gênero, sempre traz um pouco da vida do autor. As crônicas, então, são terríveis nesse sentido. Nelas o autor escancara os seus pensamentos e sentimentos, expondo-se totalmente. E na verdade o cronista segue, quase sempre, o figurino descrito por Drummond.  Busca explicar, à luz de sua vivência e conflitos internos, agora escudados em maior experiência e respaldados em conhecimentos mais amplos, os fenômenos e acontecimentos do cotidiano. Pela crônica adquirimos coragem de abordar as queixas ou ideias que antes não pudemos ou tivemos coragem de fazê-las diretamente aos protagonistas de outrora. E agora, às vezes, me pergunto por que esse impulso de escrever sobre o cotidiano ou reminiscências da infância e juventude? Por que se sente bem em sair pelas ruas e conversar com garis, catadores de lixo reciclável (e até fotografar-se com eles), vigilantes, policiais em serviço, motoristas profissionais, garçons, donos de estabelecimentos comerciais, babás e até crianças que ainda mal sabem se expressar? São pessoas que exercem atividades totalmente distintas daquelas para as quais fui treinado e me dediquei toda a vida. Hoje, depois de tanto tempo, parece que acordei para a vida, a vida como ela é, como dizia Nelson Rodrigues e não apenas aquele mundo profissional, cercado pelos top minds, formal, requintado e que lhe cercou por todo o tempo, no país e no exterior. Formalidade demais! Assim, hoje, ao procurar entender o outro, o próximo que está a seu lado e seu modo de vida, ou simplesmente descrever uma experiência própria, comparando-a com a atualidade e assim tirar lições que possam valer para si mesmo e todos que delas tomem conhecimento é simplesmente “viver”. E assim, pela escrita, prolongamos o prazer da vida.


Por consequência a tese de Drummond se aplica a todos nós que gostamos de escrever, ainda que de forma amadorística, ou seja, descobrimos ou simplesmente usamos a literatura ou a escrita, como terapia da alma e ao mesmo tempo levamos, por meio dela, mensagens construtivas para os amigos. E quando dizemos "escrita" incluímos as artes da pintura, da música e da fotografia, pois as fotos tem duas faces, a que é mostrada e a invisível, aquela que está por detrás da câmera, o pensar, a mensagem que o fotógrafo deseja repassar com a imagem por ele capturada.  O pensador Rubem Alves soube expressar isso de forma mais poética ao escrever: 
"Assim são as imagens poéticas: elas tem o poder de ir lá no fundo da alma, onde moram os esquecimentos e quando um desses esquecimentos acorda a gente sente uma estremeação no corpo. Essa é a missão da poesia: recuperar os pedaços perdidos de nós”.


 Drummond e Alves estão certos. A escrita tem efeito terapêutico. Me estremeço diante de uma bela imagem como essa que abre a crônica, uma mulher, guerreira na luta pela sobrevivência Quer terapia melhor do que “descascar” um tema e dele tirar conclusões positivas ou simples desfechos que alegram os corações?

Brasília, 13 de novembro de 2013

Paulo das Lavras


Entendendo a vida de uma catadora de lixo. Na infância a carroça do Tatá, o freteiro da pequena 
cidade do interior, fazia sucesso entre as crianças que sempre queriam uma carona.
  Falar com essa mulher guerreira, que ganha o seus sustento com uma humilde
carroça transitando pela região central de Brasília, em busca de materiais recicláveis, 
foi como uma terapia para alma do menino  que estacionou o carro e correu para a prosa e a foto,
 não sem antes dar´lhe algum para o sustento do sofrido cavalo de tração.
Foto do autor -  Brasília 2012


Conversando e aprendendo sobre a vida de uma policial
do Batalhão de Polícia Montada. Diante dos elogios
 sobre a elegância do conjunto, sorriu para a foto. Ou melhor, gargalhou tanto 
que até  teve que se curvar para não cair do enorme cavalo
Foto do autor - Brasília, Esplanada dos Ministérios


Contando histórias e aprendendo com as crianças, enquanto aguardava-se o show
da Esquadrilha da Fumaça

Colhendo peras na chácara e ensinando o valor da natureza

Dando asas ao "sonho de Ícaro",  tão desejado desde  a infância..., voar, voar, subir, subir..



A vida toda cercada pela formalidade do trabalho. Chegando à Lavras
com o Ministro da Educação 
Foto: Ascom-Ufla, 1994